O Sr. e a Sra. Dursley; da rua dos Alfeneiros, nº 4, se orgulhavam de dizer que eram perfeitamente normais, muito bem, obrigado. Eram as últimas pessoas no mundo que se esperaria que se metessem em alguma coisa estranha ou misteriosa, porque simplesmente não compactuavam com esse tipo de bobagem.
O menino que sobreviveu
Quando me dispus a reler os sete livros da série Harry Potter para este especial de preparação para o lançamento de Harry Potter e a Criança Amaldiçoada em português, busquei entender o que a obra significa para mim hoje, aos 26 anos. Fiquei ao mesmo tempo surpreso com a densidade de subtextos em cada parágrafo, como eles complementam o texto sem tirar a sua fluidez e, principalmente, me senti saudoso por lembrar exatamente o que a leitura me despertou 14 anos atrás, quando ganhei A Pedra Filosofal de presente de Natal da minha mãe.
Por exemplo, hoje eu leio Harry Potter e a Pedra Filosofal sabendo que Joanne perdeu sua mãe enquanto escrevia o livro. Que “a alegria e uma terrível tristeza” de Harry vendo a família ao seu lado no Espelho de Ojesed (“desejo” ao contrário, se você viveu em Marte nos últimos 20 anos e não sabia) não apenas soava legítima, mas era legítima. Pude analisar Harry como uma projeção da autora (eles, inclusive, compartilham o aniversário: 31 de julho) e desenvolver muito mais empatia por ele (sempre fui um grande fã da série, mas nunca gostei do personagem).
O primeiro capítulo do livro, que apresenta os Dursley, fala muito mais do que aparenta: eles não são uma família avessa à magia, mas avessa a tudo o que não é “convencional”, que esteja além de uma visão estrita do mundo. O diferente é visto como uma ameaça. Não física, mas do próprio sentido da existência. Essa necessidade de negar tudo o que não se pode conceber – ou replicar – autoafirma que aquele jeito seguro de viver a vida é o único possível, o “certo”.
Soa familiar?
Outro exemplo de subtexto pode ser encontrado nesta famosa cena de X-Men 2:
Caso ainda não tenha ficado claro, permitam que eu transcreva uma citação do Tio Walter:
“Não vou ter um deles em casa, Petúnia! Nós não juramos quando o recebemos que íamos acabar com aquela bobagem perigosa?”
As cartas de ninguém
Os Dursley representam uma clássica família homofóbica. Poderíamos dizer racista, mas não é muito usual que alguém tente reprimir a negritude de uma pessoa. E não são poucos os exemplos do nosso cotidiano que relatam pais espancando filhos com “trejeitos afeminados” na esperança de que eles “aprendam a ser homens”.
Tem até político defendendo isso na TV e aspirando a ser presidente da República!
Não surpreende o Journal of Applied Social Psychology ter atestado que ler Harry Potter na infância forma crianças e adolescentes menos preconceituosos em relação aos grupos marginalizados.
O faz porque não apenas mostra representações extremamente verossímeis de preconceito (dos Dursley com os bruxos, mas também de Draco Malfoy com os bruxos nascidos em famílias trouxas como Hermione Granger), nos apresenta os grupos marginalizados e nos dá tempo para conhecê-los, mostrando que eles estão em arranjos tão complexos quanto os nossos: Hermione é nascida trouxa, mas é a melhor estudante do primeiro ano; Malfoy tem o chamado “sangue puro”, mas é um canalha; Neville Longbottom também é de uma família bruxa tradicional, mas não tem nenhuma aptidão mágica aparente, embora seja muito mais nobre que Draco.
E todos muito mais ricos do que os Weasley.
“Eu! Livros! E inteligência! Há coisas mais importantes, amizade e bravura”
Hermione. No alçapão.
Estamos nos atendo ao primeiro livro. Nas próximas semanas falarei de outras criaturas mágicas como elfos domésticos e lobisomens.
O ponto-chave nesta obra de abertura audaciosa (JK era uma estreante e propunha uma série de sete livros, algo que autores consagrados normalmente demoram para tentar) é que nenhum personagem chega pronto. Para alcançar um objetivo, todos cooperam entre si. Se Rony Weasley representa a família que Harry nunca teve, também representa a pobreza que ele e Hermione não compartilham. E ela pode ser brilhante, mas seu temperamento não favorecia o cultivo de amizades. Vale a nota para as personagens femininas fortíssimas que JK criou. Se facilmente lembramos de Hermione e Lily Potter, temos também uma professora Minerva que combina sensibilidade, rigidez, justiça e brilhantismo na mesma medida.
Questões de gênero não são tratadas neste livro. A propósito, uma forma interessante da autora de mostrar como preconceitos são contraproducentes é tirar da obra aqueles naturalmente praticados e colocar preconceitos fantásticos contra bruxos e sangues-ruins. Se odiamos o preconceito em si, não o replicaremos em outros contextos.
Harry Potter e a Pedra Filosofal segue a estrutura clássica da Jornada do Herói de Joseph Campbell: um personagem numa vida ordinária que é convocado para uma aventura, aprende com seus erros, evolui dramaticamente e derrota o Mal. Dumbledore é o mentor tal qual Aslam (As Crônicas de Nárnia), Yoda (Star Wars) ou Gandalf (O Hobbit e O Senhor dos Anéis). O diferencial está na forte mensagem que é semeada aqui e germina ao longo da saga: não julgue um livro pela capa.
Adorei ler quando criança e achei ainda melhor lê-lo hoje. Livro bom não envelhece!