A série Harry Potter me formou como leitor. Foi com ela que eu passei a gostar de 500 páginas “sem desenhos”, aprendi a ler ininterruptamente, a imaginar cenas, a dar vozes na minha cabeça para cada personagem (após os filmes, a ler com as vozes dos atores). 13 anos e 5 (talvez mais. Honestamente, não me lembro) releituras depois, a frase “Lorde Voldemort acabara de ressurgir” ainda me provoca uma sensação terrivelmente desagradável, como se uma porta entreaberta fosse finalmente escancarada e eu só pudesse me perguntar por que ela não foi fechada com tijolos quando era possível.
JK Rowling é uma das autoras mais confiantes nos seus leitores. Escreveu uma série que evolui em complexidade e maturidade a cada volume, esperando que as crianças que começaram a leitura de Pedra Filosofal cresçam junto com Harry, entendam as mudanças de percepção em relação ao mundo que o cerca, a capacidade de questionar cada vez maior… o peso dos livros é progressivo, e não estou me referindo ao número de páginas.
De outra forma, por que um tema como direitos trabalhistas esperaria quatro livros para ser abordado? Ora, porque uma criança de 11 anos não entende os arranjos sociais que mantém sua vida funcionando. Quando somos pequenos, o leite vem da geladeira, só pensamos na vaca depois. É perfeitamente possível um pequeno bruxo imaginar que as suntuosas refeições de Hogwarts chegam às mesas por mágica. Aos 14 anos, já é possível compreender que as regalias de uns são garantidas pela exploração de outros. Se acharemos isso aceitável ou não, dependerá de cada um.
A luta de Hermione para minimamente conscientizar os colegas sobre os abusos dos quais os elfos domésticos são vítimas é inspirador, triste e extremamente real. Leitores brasileiros devem se lembrar da verdadeira batalha que foi a aprovação da Lei Complementar nº 150/2015, popularmente conhecida como “PEC das Domésticas”. Quase 120 anos após a Abolição da Escravatura, estendemos às “secretárias do lar” direitos que, acreditem ou não, elas não tinham: piso salarial, jornadas de oito horas diárias e 44 semanais, pagamento de horas extras, Fundo de Garantia, indenização em caso de demissão sem justa causa etc. Mas, se houve quem publicamente criticasse o fim do trabalho escravo, obviamente teríamos críticas à aprovação da PEC. Com o mesmo argumento de que direitos em excesso (liberdade e dignidade, respectivamente) seriam prejudiciais para os próprios beneficiados, pois a oferta de emprego reduziria drasticamente. Tudo isso pipocando na minha cabeça, leio:
Seria fazer a eles uma maldade, Hermione. Faz parte da natureza deles cuidar dos seres humanos, é disso que eles gostam, entende? Você os faria infelizes se tirasse o trabalho deles e os insultaria se tentasse lhes pagar um salário.
Hagrid. O Cálice de Fogo
Quanto mais próximo da realidade mais impressionante, não é mesmo? Não à toa a Fundo de Apoio à Liberação dos Elfos é tão parecida com as Ligas Camponesas, que batalharam por melhores condições para os trabalhadores do campo no Brasil pós-Segunda Guerra.
“Direitos trabalhistas” não é o único tema social tratado no livro. Se Prisioneiro de Azkaban já tinha insinuado um mundo de aparente paz e harmonia, Cálice de Fogo escancara uma comunidade bruxa receosa e preconceituosa. Trouxas não são alvo de galhofas por personagens desprezíveis como Malfoy e os demais alunos da Sonserina, são material de artigos tidos como sérios e equilibrados da imprensa bruxa, lidos e repercutidos por grande parte da sociedade. Gigantes são vistos como criaturas sanguinárias e a divulgação de que Hagrid é meio-gigante o coloca no pior momento de sua vida. Uma frase de Hermione faz um paralelo fantástico com membros da comunidade LGBT que “saem do armário”:
Olha só o que aconteceu com o Hagrid quando a Rita descobriu quem era a mãe dele. Olha só o Fudge tirando conclusões apressadas sobre ela (Madame Maxime, diretora da escola Beauxbatons), só porque a mãe é meio giganta. Quem precisa desse tipo de preconceito? Eu provavelmente diria que tinha ossos grandes se soubesse o que me esperava por dizer a verdade.
A terceira tarefa
Rita Skeeter representa tudo o que há de pior na chamada imprensa marrom dos tabloides britânicos, mas não precisamos conhecer o contexto da escritora. Só precisamos ler Veja, O Globo, Folha de São Paulo ou InfoMoney (a lista é maior), veículos sem nenhuma preocupação com a verdade, mas em criar histórias mirabolantes que vendam. Invadir privacidade alheia, destruir reputações e usar da influência do Quarto Poder para benefício pessoal e cristalização de preconceitos constituem o modus operandi de Skeeter.
… não parecia muito interessado em falar com a gente, você também não acha, Bozo? E por que você acha que não estava? E o que é que ele estava fazendo com uma matilha de duendes na cola? Mostrando os pontos pitorescos do povoado… que absurdo… ele sempre foi um mau mentiroso. Você acha que ele está escondendo alguma coisa? Acha que devíamos fuçar um pouco? Ludo Bagman, o desacreditado ex-Chefe dos Esportes Mágicos… é uma boa abertura, Bozo, agora só precisamos encontrar uma história para usá-la…
O furo jornalístico de Rita Skeeter
Rita é apenas um dos problemas que Harry e seus amigos enfrentam no decorrer do ano letivo. E a maioria delas é institucional e legalizada. Quando Hogwarts sedia o Torneio Tribruxo, as diferenças culturais não são vistas como uma oportunidade para a troca de ideias, costumes e visões de mundo, mas como lenha na fogueira de desconfiança. A disputa, que deveria ser um pretexto para a confraternização, é o aspecto principal do evento. E o maior objetivo é ganhar, por isso a trapaça é tão comum. Esse medo/ódio velado do diferente não é um elemento externo, mas algo compartilhado por Harry e Rony ao longo da história. Hermione parece ser a única que entendeu o propósito de tudo aquilo, e é ela quem ajuda os amigos a descontruir, ao menos, parte de seus preconceitos.
A segunda tarefa, inclusive, fala muito sobre o caráter e a maturidade dos campeões de Durmstrang e Beauxbatons: a Vítor Krum, astro de quadribol búlgaro, o que lhe faria mais falta seria a primeira pessoa que se interessou por ele pelo que era além da fama, e Fleur Delacour não poderia viver sem a irmã.
Cedrico Diggory não poderia viver sem a garota que saiu com ele num baile. Nem em As Patricinhas de Beverly Hills eu vi tanta futilidade.
O conceito das Maldições Imperdoáveis é apresentado neste livro. Imperius (“comandar de forma poderosa”), Cruciatos (“tortura”) e Avada Kedavra (“eu mato quando falo”), feitiços que não possuem nenhum objetivo além de provocar sofrimento a quem o recebe. A ideia de que o mal absoluto não é digno de perdão é interessante, mas deve ser tratada com cautela: no caso específico das Maldições Imperdoáveis, há a necessidade de treinamento, desejo e arbítrio. Não é uma decisão impulsiva atacar alguém com uma Maldição Imperdoável, de forma que a pena severa (prisão perpétua em Azkaban) faz sentido.
É possível dizer que neste livro, inquestionavelmente, nos deparamos com uma autora que ficaria eternizada. Estou terminando uma resenha de quase 1.500 palavras e pouco falei de magia. Harry Potter e o Cálice de Fogo fala sobre exploração de mão-de-obra, xenofobia, preconceito racial, parcialidade da mídia, abusos do Poder Judiciário e manipulação de informações. “Se você quer saber como um homem é, veja como ele trata os inferiores, e não os seus iguais”, disse de forma sábia o injustamente condenado Sirius Black.
Os princípios de Crouch podem ter sido bons no início – eu não saberia dizer. Ele subiu rapidamente no Ministério e começou a mandar executar medidas muito severas contra os partidários de Voldemort. Os aurores receberam novos poderes – para matar em vez de capturar, por exemplo. E eu não fui o único a ser entregue diretamente aos dementadores sem julgamento. Crouch combateu violência com violência e autorizou o uso das Maldições Imperdoáveis contra os suspeitos. Eu diria que ele se tornou tão impiedoso e cruel quanto muitos do lado das trevas. Ele tinha os seus partidários, me entendam – muita gente achava que ele estava tratando o problema corretamente, e havia bruxas e bruxos exigindo que ele assumisse o Ministério da Magia.
Sirius. A volta de Almofadinhas
Você está cego de amor pelo cargo que ocupa, Cornélio! Você atribui demasiada importância, como sempre fez, à chamada pureza do sangue! Você não consegue reconhecer que não faz diferença quem a pessoa é ao nascer, mas o que ela vai ser ao crescer! O seu dementador acabou de destruir o último membro de uma família de sangue puro tão antiga quanto a de outros, e veja em que foi que ele transformou a própria vida! Digo-lhe agora, tome as medidas que sugeri e você será lembrado, no cargo ou fora dele, como um dos Ministros da Magia mais corajosos e sábios que já conhecemos. Não faça nada, e a história irá lembrá-lo como o homem que se omitiu e permitiu que Voldemort tivesse uma segunda oportunidade de destruir o mundo que tentamos reconstruir!
Dumbledore. Os caminhos se separam
O talento de Lord Voldemort para disseminar a desarmonia e a inimizade é muito grande. Só podemos combatê-lo mostrando uma ligação igualmente forte de amizade e confiança. As diferenças de costumes e língua não significam nada se os nossos objetivos forem os mesmos e os nossos corações forem receptivos.
Dumbledore. O começo
Rowling escreveu sobre o passado, mas o tempo é um deus-serpente engolindo o próprio rabo (obrigado pela citação, Alan Moore) e o passado está fadado a se repetir. Que todos nós compreendamos a mensagem e trabalhemos ativamente para impedi-lo.