Plano Aberto

Judy: Muito Além do Arco-Íris

Judy Garland Muito Além do Arco-Íris

“Vocês não vão me esquecer, vão?”
“Prometam que não.”

Judy Garland, tanto a personagem dessa cinebiografia quanto a grandiosa artista que protagonizou clássicos da Era de Ouro de Hollywood, possui várias facetas. Para os entusiastas da impressionante cantora ou da queridinha do fim dos anos 30, a sua vida privada assustaria. Ela era a jovem Dorothy Gale, de “O Mágico de Oz”, mas também a atriz mais madura que estrelou, dentre outras obras, “Nasce Uma Estrela”, de 1954. Fora a carreira de sucesso como cantora, Garland era uma mãe para três crianças e uma esposa para vários maridos. Era, por fim, igualmente uma pessoa com sérios problemas internos desenvolvidos ao longo de décadas. Diante das inúmeras temáticas possíveis para abordagem, a sua cinebiografia, no entanto, parece perdida para dizer quem seria a sua Judy Garland, em meio às tantas que existiram.

Nesse lugar além do arco-íris que é apresentado, os céus não são azuis e os problemas não derretem como gotas de limão, como a canção que impulsionou a carreira da garota sugeria. Em contrapartida, como “Judy: Muito Além do Arco-Íris” – e a história – narra, Garland nunca conheceria na vida real um mundo como Oz. Pelo contrário: ela conheceu cedo a pressão dos empresários que sujaram sua estrada de tijolos amarelos. Assim sendo, mesmo que didáticas, cenas como a que começa a obra são as mais precisas na construção da personagem. Elas moldam uma menina que tem sua infância corrompida, ao passo que, no presente narrativo, já com mais de quarenta anos, Judy luta para não perder a infância de seus filhos. Nesse sentido, o cineasta Rupert Goold pavimenta bem as origens das dores que se eternizaram em Judy, muito além do arco-íris.

Contudo, quando se encaminha a explorar sua personagem na sua maturidade, não mais apenas em sua juventude, os problemas do longa se revelam. Em um primeiro cenário, a maternidade é um ponto de extrema importância para o que Goold enxerga em Judy. Existe uma conversa até mesmo nos retornos contínuos ao passado, que explicitam um contraste entre o que Garland viveu – uma infância sufocada para consolidar a sua carreira cinematográfica – e o que ela quer para os seus filhos. Por sinal, a vertente artística de Judy Garland perde um considerável valor no começo da obra e no decorrer dela. Em oposição a querer reerguer sua carreira, Judy quer meramente ganhar uns trocados, em prol de poder reaver a guarda de suas crianças. A sua voz, por isso, é tanto um dom quanto um fardo. E cantar é uma tarefa árdua, o que uma cena dela com Liza Minneli demonstra.

Renée Zellweger, por sua vez, precisa incorporar essa mãe ao mesmo tempo que o longa apresenta as cicatrizes que Judy carrega. Contudo, os pesares da personagem se redundam mais do que se agravam no filme. Há o excessivo uso de álcool, o abuso de medicamentos, a incapacidade de dormir e a depressão corroendo uma mulher de talento singular. Outras questões se embaralham, como a luta de Garland em ganhar dinheiro para seus filhos sendo esquecida para, depois, retornar abruptamente. Quando, portanto, o clímax está para ser atingido, Goold opta por sobrepor, rápido demais, camadas de problemas. Ele não as concilia num crível tom pungente, pois automatiza o peso dramático vigente. No mais, não colabora que o papel de Finn Wittorock, como o interesse de amoroso, seja bastante errático, indo e vindo na trama sem pudor.

O que o cineasta consegue, por outro lado, é mostrar como Garland não era uma artista ordinária. Nesse ponto, a sequência da mulher com dois de seus fãs é de uma simplicidade tão certeira que impede o filme de ser inócuo em sua integralidade. Ela, da maneira simples como é encenada por Goold, exemplifica a grandeza da mulher, mesmo num escopo tão particular. Além dessa cena, destaca-se a da personagem interagindo com o seu médico. Em termos de traduzir o impacto de alguém, existe mais valor dramático em segmentos como os comentados do que, por exemplo, na rápida interação de Freddie Mercury com um fã seu após ser diagnosticado com AIDS, em “Bohemian Rhapsody“. No que tange aos coadjuvantes mais relevantes, porém, como a assistente de Judy, o resultado não é o mesmo.

Pelo modo que se encerra, contudo, é um tanto estranho que a nota do fim da cinebiografia seja esperançosa. No mesmo lugar que, antes, tinha sido vaiada – uma cena onde Goold errou ao não evidenciar a espera do público -, Judy encena o seu canto de cisne. O tom do longa-metragem mescla uma abordagem pessimista, por conta da tragédia que consumou a vida de Judy, com uma otimista, pois encerra-se justo com “Somewhere Over The Rainbow“. Dos males que a conclusão carrega, porém, esse é o menor. Tal mistura não origina um casamento perfeito, em especial em vista de como a obra é conduzida até o seu fim. O que se concretiza, entretanto, é uma triste ironia. Ela sustenta o mais bem aproveitado dos temas do longa-metragem: sobre legado. Quando Judy pede que não se esqueçam dela, é também de suas quedas que ela fala.

Em meio a várias temáticas que abrangem sua vida perturbada, a cinebiografia de Judy Garland cria uma salada sobre a derrocada da atriz. Numa última instância, torna-se um desafio estabelecer uma premissa para um longa sem propósito – a não ser resgatar o que se perdeu na estrada de tijolos amarelos. É a sua cena conclusiva, portanto, em meio a um singelo momento pontual, que consegue estabelecer o mínimo de razão para a obra existir: relembrar Judy e os equívocos da indústria que a assassinou. Eis uma artista que foi enorme e poderia ser ainda mais se suas asas não tivessem sido cortadas tão prematuramente. Se pequenos e alegres pássaros azuis podem voar além do arco-íris, por que ela não pôde?


Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto do Festival do Rio de 2019. Para conferir toda a nossa cobertura, clique aqui.

 

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