“Kingdom Hearts” e a gameficação da infância

“Kingdom Hearts” e a gameficação da infância

Quando as evoluções narrativas e mecânicas são guiadas pelo amadurecimento humano

Redação - 7 de maio de 2021
Por Fellipe José Souza

Ao dissertar sobre Tokimeki Memorial, Tim Rogers descreve a experiência do jogo como a possibilidade de reviver um período da vida, o colegial. Nos créditos de Tokimeki Memorial o protagonista evoca a vontade, impossível de concretizar, de reviver toda a experiência do ensino médio. Kingdom Hearts remete a essa vontade, o jogo é construído no desejo ingênuo de ter a graça de permitir a criatividade guiar uma brincadeira infantil.

O objetivo do time de desenvolvimento, da Square Enix, era criar uma experiência com a liberdade de movimentação e proeza de exploração de Mario 64, o pior objetivo possível no mundo que já existe Mario 64. O desejo nunca é alcançado, nada na movimentação de Kingdom Hearts é tão instigante como o clássico do Nintendo 64, mas em compensação uma experiência singular surge dessa proposta. Jogar Kingdom Hearts é pegar os bonecos na caixa de brinquedos, de distintos universos ficcionais, e criar uma narrativa com esses elementos distintos. Uma experiência principalmente lúdica.

O jogo começa em uma ilha: acompanhamos Sora, protagonista e avatar do jogador, e seus amigos Kairi e Riku. Nesse ambiente, o jogador não encontra figuras paternais, ou qualquer outra espécie de mentor, e as primeiras interações do jogador com o universo são em formas de brincadeira. Apostar corrida, duelos de espadas. As mecânicas e controles são apresentados nessas atividades, o jogo deixa evidente tudo que almeja logo nos primeiros minutos que o jogador vira um agente ativo. Aprender a controlar Sora é um compromisso com o lúdico, todo resto da experiência é uma continuação mais grandiosa dessas brincadeiras.

O primeiro grande evento de Kingdom Hearts é resultado da vontade dos personagens de sair da ilha e explorar o mundo. Nesse momento a obra me remeteu a uma memória da minha infância, um faz de conta com a companhia de meu primo no qual éramos marinheiros desbravando o mundo – na nossa imaginação não era nada muito sofisticado como Moby Dick, era mais parecido com o bando Capitão Gancho. Em menos de uma hora, o jogo já tinha me apresentado o potencial lúdico e me fez sentir no resgate de minhas memórias o efeito desse universo ficcional.

Quando a introdução (parte da ilha), termina, o jogador é transportado por uma jornada pelos universos da Disney e também esbarra em personagens da série de jogos Final Fantasy. Nesse momento a caixa de brinquedos é aberta e costurada em uma única narrativa. Apesar do crossover curioso, Kingdom Hearts não parece uma união de fanservices gratuitos ou a busca de um “star power” nessa união improvável, esses “mundos” são arquitetados na ausência de qualquer limitação lógica ou preocupação com “lore”, a função principal é virtualizar uma criatividade ingênua e despreocupada.

Mecanicamente, a experiência é bem simples. Em uma party com três personagens – Sora e, geralmente, Donald e Pateta – o jogador enfrenta os desafios de exploração e combate. A dificuldade não exige muito, a parte mais exaustiva é a câmera datada, mas o combate Action RPG se mescla bem com a exploração dos cenários 3d com bastante verticalidade.

Ao decorrer da aventura, com a exploração dos universos da Disney, o jogador evolui de nível e fica mais poderoso, ganha novas habilidades e enfrenta chefes que são personagens clássicos das animações. A evolução mecânica acompanha o crescimento de Sora. As amizades amadurecem e ganham mais nuances, existe um esforço maior do protagonista na descoberta dos mistérios de Kingdom Hearts. Evolução mecânica nunca parece desconexa ao desenvolvimento do personagem e a proposta lúdica do jogo.

Não surpreende que o último poder de exploração entregue a Sora seja a capacidade de voar, ensinada pelo próprio Peter Pan na Terra do Nunca. Na animação da Disney, esse ambiente funciona como um espaço que possibilita o amadurecimento, a fantasia máxima antes da despedida da personagem Wendy de sua infância. No excesso da fantasia e criatividade, Wendy aceita o fardo de envelhecer, em Kingdom Hearts a capacidade de voar possibilita ao jogador, e Sora, o caminho para o desafio final.

Kingdom Hearts é a Terra do Nunca. O excesso de fantasia que exige do jogador a suspensão de descrença para apreciar uma experiência extremamente irracional. No final do jogo, Sora aprende uma última lição, que exige o sacrifício da infância em virtude de algo maior – um compromisso, uma responsabilidade que transcende o desejo. A vida adulta se aproxima do protagonista na cena que antecede os créditos finais, quando a experiência termina, resta ao jogador encarar as próprias responsabilidades em seu cotidiano.

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