Plano Aberto

La La Land: Cantando Estações

O cinema, assim como o teatro e a literatura, precisa da suspensão de descrença para cativar o público. A expressão, registrada pelo poeta inglês Samuel Taylor Coleridge, se refere ao desejo voluntário do espectador de aceitar a ficção como verdade em troca de entretenimento. Uma explicação possível para tanta gente “não gostar de musicais” é exatamente o desafio recorrente à suspensão de descrença. Ninguém começa a cantar e a dançar no meio de um engarrafamento, e isso nos lembra que aquilo é “apenas um filme”, atrapalhando a imersão na história.

É possível, entretanto, criar imersão em musicais. Não à toa um dos momentos mais icônicos da história do cinema é Gene Kelly cantando na chuva no musical homônimo de 1952; meio século depois, Lars von Trier revoltou as entranhas do mundo com seu soturno Dançando no Escuro. Diametralmente opostos no tom, ambos estão ancorados em personagens empáticos e atos bem definidos, como que numa ópera, onde as canções marcam as transições da narrativa e reforçam as intenções do diretor. Enquanto Kelly encanta, Trier devasta, ambos extremamente competentes em seus intentos.

La La Land: Cantando Estações (subtítulo desnecessário, mas ao menos oportuno) pega esta fórmula e subverte. Porque o tema de La La Land é a falta de tema, a fluidez entre a indignação e o riso, a alegria e a melancolia, o doce e o amargo. O casal de protagonistas causa tanta identificação na audiência que as canções não trazem descrença, mas reforçam o estado de espírito dos personagens.

Mia (Emma Stone, no melhor trabalho de sua carreira) é uma barista que sonha em ser atriz, motivo pelo qual abandonou a faculdade de Direito e se mudou para Los Angeles; Sebastian (Ryan Gosling, a quem as pessoas só darão o devido valor quando deixar de ser bonito) é um pianista de jazz apaixonado pela música a ponto de perder seu emprego por se recusar a tocar números populares em clubes e de stalkear um famoso clube de jazz que se tornou num “ultrajante” espaço de samba e tapas (aperitivo típico espanhol). Em comum, os dois tem a paixão pelo que fazem e a chama dos sonhadores. Além do fracasso.

Bons filmes me conquistam na abertura, e La La Land começa em um plano-sequência com mais de 4 minutos, que ao mesmo tempo mostra a pluralidade de LA e apresenta os dois personagens principais. Ironicamente, a letra fala de não deixar que as pessoas destruam seus sonhos, pois nasceu “mais um dia de sol”, simultaneamente à informação de que este ato se passa no inverno (daí o subtítulo brasileiro), estação marcada por frio e morte.

Usando as estações do ano para demarcar os atos do filme, a fotografia tem um papel fundamental. Quando Mia está em uma festa na qual não gostaria de estar, o tom predominante do ambiente é amarelo (alegria) e do banheiro é vermelho (paixão), mas ela usa um vestido azul (monotonia). Para ir a um jantar quando gostaria de estar no cinema, os tons amarelos contrastam, agora, com um vestido verde (indiferença, mas também esperança). Essas dicas se repetem ao longo da película, reforçando sensações e indicando o que está por vir. Sebastian, por exemplo, sempre usa terno quando está infeliz, representando sua prisão em uma vida incompatível com seus sonhos.

Apesar do sorriso, a fotografia não deixa dúvidas de que Sebastian não está feliz

Aqui, além da paleta quente, Sebastian tirou o paletó, outro indicativo de que está à vontade

Quando estão juntos, o quarto de Mia e Sebastian emana uma cor vermelha, representando o amor que sentem um pelo outro

Como não poderia deixar de ser, o som é elemento narrativo fundamental neste musical. Não apenas as canções, a sonoplastia também dispara gatilhos cognitivos, como a buzina do carro de Sebastian, quase um arauto para anunciar sua chegada. O diretor Damien Chazelle – ASSISTAM A WHIPLASH – mistura sons diegéticos com não-diegéticos (que pertencem ou não à ação narrativa) de forma orgânica e magistral, facilitando as transições entre as partes encenadas e cantadas de La La Land. O tema de Mia e Sebastian é recorrente, mas usa diferentes andamentos de acordo com o estado de espírito dos dois.

Chazelle, com apenas 31 anos e dois filmes divinos na cinegrafia, abusa de soluções inventivas para contar sua história, sem perder o foco no que é realmente importante: a narrativa. Quando um plano-sequência é necessário, ele o usa de forma coordenada e suave, de modo que não se torne maior do que a cena que estamos vendo. Em determinado momento, a câmera vai para dentro de uma piscina para mostrar que o mundo do show business pode afogar os incautos e gira no próprio eixo de forma vertiginosa. Quando quer mostrar os personagens isolados dentro de suas frustrações, usa simples planos abertos, colocando-os pequenos no mundo que os oprime. E orquestra uma dança cósmica no momento mais encantador do filme, uma homenagem aos grandes musicais de meados do século passado, rodada no Observatório Griffith.

Mia em uma audição: as paredes indicam seu encarceramento num ciclo vicioso de audições fracassadas

Em uma homenagem a figuras trágicas e/ou ligadas ao gênero de filme musical, vemos este quadro de uma Mia desacreditada passando por um painel com Marilyn Monroe, Charlie Chaplin, Shirley Temple, W. C. Fields e James Dean

Quando Sebastian não sabe para onde sua vida vai, o horizonte se coloca à sua frente

Em seu roteiro, quebra constantemente as expectativas de quem já viu dúzias de filmes do gênero garota-com-um-sonho-encontra-cara-com-um-sonho-e-os-dois-se-ajudam. Aposta no riso (em alguns momentos histéricos porque, sim, La La Land também é um filme engraçado) e corta abruptamente com desilusão e desesperança. Se as flores nascem na primavera e o mundo está em festa no verão, o outono da alma marca o hipogeu, o começo do fim. Nada dura para sempre ou volta como era antes.

O que começa como um musical gracioso e bem filmado termina sendo um ensaio sobre ter sonhos, correr atrás, realizá-los e lidar com eles. Nenhuma felicidade é plena, embora as escolhas que não fizemos não anulem de forma alguma as que fizemos. A vida é apenas agridoce, cabendo a nós desenvolver o paladar necessário para apreciar seu sabor. O êxito de La La Land está em não dar o que o espectador deseja, mas o que ele conhece. Enquanto musical, não nos tira da realidade para nos colocar num ameno mundo de fantasia, faz exatamente o oposto.

Exatamente por isso, é brilhante.

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