Plano Aberto

Meu Nome é Daniel

Por Arthur Salles

A certa altura de “Meu Nome é Daniel”, o diretor, narrador e personagem central do estudo visto em tela, tenta, por repetidas vezes, acender um palito de fósforo. Tarefa tão trivial e simples para a maioria das pessoas, essa acaba por se transformar em um momento de respiro em determinado ponto. Daniel, o mesmo do título, é acometido por uma deficiência que lhe afeta a fala e demais extensões de sua coordenação motora. Não diagnosticada até hoje, a possível verificação e reconhecimento da enfermidade é a motivação de seu realizador para o registro e apresentação de sua vida – servindo de si mesmo não somente como fio condutor, mas final “objeto” a ser analisado pelo filme.

Intercalando gravações (registradas por Super-8 e fitas VHS, principalmente) de sua infância com as recentes filmagens, já concebidas com o intuito de pertencerem ao filme, Daniel Gonçalves (em sua estreia na direção de longas-metragens) faz de seu relato um acompanhamento íntimo de seu desenvolvimento, relegando, por vezes, sua doença (e a investigação dessa) ao segundo plano. Como na cena citada acima, em que Daniel, após fracassadas tentativas, interrompe a cena gritando “corta!” e caindo no riso, a autoconsciência do próprio filme e de seu realizador é o que demarca cada momento da projeção, sempre acompanhada pela narração descritiva (sobre fatos, integrantes e sentimentos) do protagonista. É por se entender como o que o é, e não pelo que o aflige, que as declarações e situações vividas por Daniel se afastam de fáceis e baratos apelos emocionais, criando empatia por seu carisma e vivacidade.

O grande destaque de “Meu Nome é Daniel”, além do próprio, claro, é sua narração como elemento de articulação entre cada registro exposto no filme. Carregados pelo tom irônico, os comentários do diretor abordam cada momento para além de sua contextualização, servindo-se como ferramentas fundamentais para sua aproximação junto ao público. Além de encontrarem boa sustentação no humor do narrador, nesses também são confiadas pequenas revelações e confissões, antes desconhecidas por familiares ou amigos de Daniel. Ainda que a narração verbalize por demais o que é projetado, é por meio dessa que o filme constrói o enlace necessário para cooptar o espectador logo em seus minutos iniciais, mantendo seu bom ritmo por toda a duração.

As reflexões do protagonista sobre os fragmentos de seu crescimento, da infância à adolescência, mais contrastam do que se alinham às captações atuais. Por um (longo e) determinado período, “Meu Nome é Daniel” nos oculta quase que completamente os registros recentes de seu diagnóstico. Daniel constrói o próprio “eu” pelo resgate do passado, apresentando tal como a história de si mesmo a ser contada; quem ele é, hoje, não se deve à verificação de sua doença, mas a tudo o que viveu, devidamente apresentado ao espectador.

Nesta perigosa trilha entre auto compadecimento e descrição (ora objetiva em forma, ora subjetiva pela narração), “Meu Nome é Daniel” joga um pouco de sua atenção para questões muito além de seu percurso. Remetendo à uma fala de sua mãe, introduzida pela metade do filme, sobre condição social, seu encerramento pouco agrega ao restante do longa – deslocando-se, na verdade, de toda sua construção. Apesar da natureza passiva e apaziguadora do discurso, é a assertividade das declarações e apresentações enviesadas por Daniel que ganham vida fora da sala de cinema e em cada espectador – independentemente de quaisquer classificações sociais.


Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto do Festival Olhar de Cinema de 2018.
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