Diretores “autorais” são constantemente criticados pela repetição de seu estilo, principalmente quando os cineastas mantém não só uma forma, mas um conteúdo similar em toda sua filmografia. Hong Sang-soo, que na crítica de A Câmera de Claire eu chamei de “investigador da essência humana”, é um belo exemplo de cineasta que, apesar de não variar tanto em sua forma (ao contrário, o sul-coreano busca sempre novas alternativas para aprofundar seu estilo de narrativa), traz uma invejável variação em seu conteúdo fílmico. Na Praia À Noite Sozinha, principal lançamento de Sang-soo no circuito brasileiro em 2017, é mais um belo exemplo de como seu cinema extremamente contido e naturalista consegue emanar verdade a cada enquadramento.
Na trama, acompanhamos a atriz Younghee (Kim Min-hee), em dois momentos distintos: durante uma viagem na Alemanha, quando perambula pelas ruas e interage com amigos; em sua rotina na Coréia do Sul, onde tenta superar o fim de um amor que consumiu todo seu esforço emocional. Por meio desta trama, Sang-soo aborda não só a luta pela superação do fim de um relacionamento de alto investimento afetivo, mas também a superficialidade presente na objetificação de Younghee, que muitas vezes é julgada apenas por sua beleza.
É encantador como Sang-soo escolhe e desenvolve temas que se adequam perfeitamente ao seu estilo de filmar. Para retratar a trajetória de Younghee, uma personagem melancólica e solitária, seus já conhecidos longos e estáticos planos abertos são a escolha ideal, imprimindo a solidão de uma pessoa que não superou o fim de um relacionamento amoroso.
O roteiro (também de Sang-soo) aposta, como é de feitio do sul-coreano, em diálogos rotineiros para sugerir, aos poucos, as questões que incomodam Younghee. Em suas interações com os demais personagens, surge sempre, de supetão, alguma conexão com assuntos amorosos, que fazem a personagem demonstrar alguma fragilidade por seu coração partido – sentimento geralmente expresso pelo silêncio ou pelo olhar perdido da fantástica Kim Min-hee.
Nesses momentos, Sang-soo mostra-se ainda mais interessado em estudar a essência humana, utilizando zooms nada orgânicos que marcam a presença de sua câmera nas locações. O resultado é a criação de uma linguagem quase documental, que alia os movimentos de câmera extremamente precisos mas igualmente calculados a atuações verdadeiras e realistas.
A câmera do sul-coreano, aliás, já marca sua presença no primeiro plano de Na Praia À Noite Sozinha, quando o diretor filma sua protagonista de costas, num plano bem próximo de seu corpo, quase como se invadisse seu espaço sem que a moça tivesse ciência. Ali, Sang-soo constrói imediatamente um ambiente de exposição na a vida de Younghee. Sua câmera sempre busca invadir o lado mais pessoal dos personagens, algo que fica evidente se percebermos como as situações mais pessoais de Younghee são retratados apenas em seus momentos finais – a câmera que invade o cinema ao fim da projeção; a câmera que chega na praia pela manhã, quando a personagem está acordando.
Voltando à solidão da protagonista, esta é estabelecida por diversos fronts ao longo da obra. O script usa desde a hostilidade de outras mulheres, que, pela beleza de Younghee, se sentem ameaçadas e tentam afastá-la de seus maridos, até a constante objetificação que cerca a jovem, vide o personagem que admite só ter se relacionado com a personagem por sua beleza e o rapaz que se aproxima para perguntar as horas e, não tendo resposta, vai embora sem perguntar para nenhuma outra pessoa que ocupava o cenário – claramente utilizou a pergunta como pretexto para se aproximar de Younghee.
Com tantas situações de exposição e hostilidade, Sang-soo ainda encontra espaço para explorar os momentos de solidão de sua protagonista, que são sempre interrompidos, geralmente, pela chegada de amigos (como quando a moça está deitada na praia). Mas o mais interessante é como o diretor faz com que a arte seja a maior válvula de escape de Youngee. A cena em que a personagem mais se abre emocionalmente é justamente aquela em que está em um cinema, mas logo precisa se recompor para disfarçar sua tristeza, já que a sessão acabou e as luzes foram acesas.
A arte também funciona em uma brincadeira de transição da trilha, que vai de diegética (que ocorre dentro do universo do filme), quando tocada por Younghee ou um amigo pianista da personagem, para extra-diegética (fora do universo do filme), quando tocada fora de cena. Tal transição não é, porém, gratuita. A trilha é parte essencial na criação dos sentimentos da obra, mas, naturalista que é, Sang-soo não abusaria do recurso se não pontualmente. A forma que o diretor encontra para inserir a trilha em mais oportunidades, então, é trazendo seus personagens executando as músicas em teclados ou pianos, e permitindo que elas continuem a acompanhar as imagens mesmo quando a montagem corta para outros momentos da trama, não trazendo mais as cenas dos músicos em ação.
Diferente de boa parte dos grandes nomes do cinema atual, que buscam emoção no grandioso, no espetáculo, Sang-soo segue caminho oposto e retrata o trivial. Sua câmera busca infiltrar a intimidade, e desenvolve, filme a filme, um estudo de nossa essência e verdade. A investigação da condição humana na (líquida) sociedade moderna é o grande mote da carreira do sul-coreano, que, mais uma vez, obtém sucesso não por um vasto uso da linguagem cinematográfica, mas pelo amplo e profundo domínio do curto leque de técnicas que utiliza.
Carros voadores, grandes romances, tiroteios e demais devaneios apoteóticos e apocalípticos impressionam, sim, mas nada é mais cinema do que pegar a câmera e, ao virá-la para o real, nos fazer refletir sobre nossa existência.