Karim Aïnouz tem ascendência argelina. O documentário Nardjes A., portanto, a princípio funcionaria como uma reconexão do diretor brasileiro com suas raízes norte-africanas. No entanto, curiosamente, Aïnouz não aparece diante da câmera, sua voz nunca é ouvida, suas impressões a respeito do que filma jamais são explicitadas. Esse é um filme observacional, que toma a jovem ativista do título como protagonista para acompanhar uma gigantesca manifestação contra o governo pelas ruas de Argel, em março de 2019.
A guerra de independência da Argélia (1954-1962) produziu grande impacto nas esquerdas mundo afora, pelo reforço das perspectivas de derrotar o colonialismo através de uma revolução armada, violenta. O cinema também reverberou esse evento: A Batalha de Argel (1965), obra-prima do italiano Gillo Pontecorvo, é provavelmente o mais emblemático filme político da década de 1960, influenciador de toda uma geração de realizadores engajados, da Europa ao Terceiro Mundo.
Nesse sentido, é bem interessante ver outro cineasta estrangeiro falando da atual efervescência política na Argélia, mais de 50 anos após A Batalha de Argel. A Frente de Libertação Nacional (FLN), outrora revolucionária, surge agora como representante de um status quo insuportável, mas permanece o foco no poder transformador do povo organizado, movido a desejo de liberdade e alguma dose de raiva. Aïnouz, diretor de um cinema em que a política frequentemente se manifesta nos corpos de seus personagens – Madame Satã (2002), O Céu de Suely (2006), Praia do Futuro (2014) e A Vida Invisível (2019), por exemplo –, promove aqui um encontro bastante produtivo entre esse imaginário cinematográfico de Argel como espaço revolucionário e as novas dimensões da mudança social, encarnadas na figura de uma jovem mulher, neta de guerrilheiros dos anos 1950-60, artista, independente, revoltada com o estado das coisas em seu país.
Nardjes, a protagonista, atua como guia para o olhar do espectador em meio à multidão que protesta contra a tentativa do presidente Abdelaziz Bouteflika de conseguir um quinto mandato (ele estava no cargo desde 1999 e acabou renunciando cerca de um mês após a manifestação registrada por Aïnouz). O filme não se dedica realmente a destrinchar essa personagem, a apresentar suas complexidades (há uma narração em off bem econômica da própria Nardjes, que vez ou outra fala um pouco de si), mas opta por tratá-la como esse avatar de uma juventude argelina contemporânea que ao mesmo tempo reivindica a luta de libertação do passado e não suporta mais o grupo político que liderou essa mesma luta e ocupa o poder há décadas.
Escolha que acaba se mostrando eficaz, na medida em que Nardjes A. consegue criar uma relação orgânica, ainda que breve, com o universo retratado. O filme pulsa no ritmo das músicas cantadas nas ruas, fazendo troça do presidente decrépito (Bouteflika tem mais de 80 anos), desafiando a repressão, relatando momentos cotidianos daqueles jovens. Algumas canções, repetidas à exaustão, são difíceis de esquecer. E Nardjes, corpo sempre em movimento, caminhando, cantando, dançando para descarregar a adrenalina pós-manifestação, eventualmente se livrando da abordagem inoportuna de algum homem, se posiciona como mais uma personagem feminina construindo a própria liberdade no cinema de Karim Aïnouz.