Plano Aberto

O Justiceiro – 1ª temporada

O Justiceiro The Punisher Netflix Jon Bernthal

Para ler a crítica de “Três da Madrugada”, primeiro episódio de O Justiceiro, clique aqui.

Após praticamente roubar o protagonismo de Matt Murdock na segunda temporada de Demolidor, a Netflix aceitou expandir o universo da Marvel em seu catálogo com uma série solo do Justiceiro, permitindo a Jon Bernthal reprisar seu papel de Frank Castle. Como ela não estava nos planos originais da rede de streaming, as conexões com os demais Defensores são praticamente inexistentes. Em um universo de vilões interdimensionais, sociedades secretas e poderes além da imaginação, este anti-herói palpável é um sopro de esperança para as adaptações de quadrinhos.

“Aqui se faz, aqui se paga” para todos

A primeira temporada de O Justiceiro dá um pano de fundo para Castle, detalhando o seu período como fuzileiro servindo no Afeganistão e o papel de suas ações no campo de batalha na morte de sua esposa Maria (Kelli Barrett) e filhos Frank Castle Jr. (Aidan Pierce Brennan) e Lisa (Nicolette Pierini). Paralelamente à tragédia de Castle, a história de outros veteranos mostra como pessoas diferentes, expostas ao mesmo tipo de experiência traumática, reagem de formas diferentes. Tudo é uma questão de escolha, algo que a série martela – sem trocadilhos – ao longo de todos os episódios.

O Justiceiro trabalha numa zona cinzenta onde ninguém é completamente íntegro, equilibrado ou mesmo coerente. E esta não é uma escolha exatamente simples. Os vilões não são afegãos, mas americanos. Brancos. E a organização maligna é “apenas” a CIA. É possível analisar a produção da Netflix como um estudo – superficial, é verdade – da grande falha do american way of life, que se tornou numa fábrica de excluídos e potenciais terroristas. O mito da meritocracia decepciona quem passa a vida seguindo ordens em busca de um futuro melhor que nunca chega. Os veteranos das Forças Armadas são prova disso. Heróis na guerra, invisíveis na pátria que arriscaram as vidas para defender.

A perda da família assombra Frank, que sempre tem a mesma lembrança. É curioso o fato de que vemos três personagens de forma recorrente, mas não sabemos praticamente nada sobre eles. O Justiceiro tem mais falta da ideia de uma família feliz, um “lar” perdido, do que das pessoas em si.

Personagens como O’Connor (Delaney Williams) e Lewis (Daniel Webber) são um retrato dos Estados Unidos na “Era Trump”: o cinismo e a necessidade de culpar o outro pelas próprias frustrações viram combustível numa retórica inflamável de ódio pelo diferente, incutindo em mentes perdidas o sentimento de que a guerra no exterior não adianta de nada se outra guerra não for travada, dentro do país, para defender um ideal vago de “terra prometida”. O arco de Lewis, apesar de desempenhar uma função importante dentro da temporada, acaba sendo uma mera ferramenta para avançar com a história, menosprezando a discussão realmente importante a respeito da perda da sanidade em um país semi-esquizofrênico.

Mal recorrente nas produções do Universo Cinematográfico da Marvel na Netflix, o formato com 13 episódios é inchado. Isso compromete o ritmo da série, que em alguns momentos é acelerado e, em outros, arrastado. A necessidade de colocar absolutamente todas as histórias conectadas acaba tirando a força de personagens como o próprio Lewis e Curtis (Jason R. Moore), que se tornam satélites de Frank. Algumas revelações sobre a índole dos personagens deixam de surpreender pelo tempo que demoram para acontecer.

Karen Page (Deborah Ann Woll) aparece quando Frank precisa de uma jornalista investigativa ou a história precisa de uma tensão para motivar Frank a se colocar em perigo para salvá-la. A personagem simplesmente não funciona.

Este não é o único problema em O Justiceiro. Para defender sua tese de que tudo é uma questão de escolha, os personagens são colocados em situações idênticas à de Frank. Os soldados por servirem com ele , a agente especial Dinah Madani (Amber Heard Revah) por ser tão obstinada e inflexível quanto ele e David (Ebon Moss-Bachrach) por também colocar a família em primeiro lugar. O criador Steve Lightfoot procura mostrar que o assim chamado “sistema” cria uma sociedade quebrada, praticamente impossível de gerar indivíduos saudáveis e funcionais. Acaba patinando por deixar personagens de lado durante vários episódios, até que estes voltem repentinamente quando lhe convém.

Os antagonistas em O Justiceiro estão mais alinhados ao já saudoso Kilgrave de Jessica Jones do que o insuportável Tentáculo, exatamente porque são inimigos factíveis, encontrados diariamente por todos nós. E não há um embate de Bem contra Mal: a jornalista que se opõe ao terrorismo defende o porte de armas, o senador contrário ao porte de armas é um hipócrita, a “guerra contra o terror” é uma fachada e o grande “herói” é um louco em busca de vingança. Numa nação que exala violência, como ser diferente?

Billy Russo (Ben Barnes) é um colega fuzileiro de Frank com motivações coerentes, mas com habilidades que surgem praticamente do nada, quando assim são necessárias

Que sejam feitas as ponderações sobre as carências de O Justiceiro, mas não se deixe de dizer: quadrinhos podem ser divertidos, e não há nada de ruim em fugir da realidade com mascarados enfrentando alienígenas ou similares. Mas isso não é tudo. O final da temporada, extremamente contido e singelo, mesmo anticlimático, está carregado com uma dignidade que falta no gênero. Todos gostamos de Frank Castle, mas a forma encontrada para concluir seu arco narrativo é tão boa que quase faz desejar que o personagem não volte, pois é praticamente impossível que façam algo melhor com ele. E a ideia de que um personagem tão “pé no chão” não caiba num universo adaptado dos quadrinhos diz muito sobre a forma como a indústria tem trabalhado ultimamente.

Assista à primeira temporada de O Justiceiro clicando aqui.

Sair da versão mobile