Texto sobre “Lava Jato”, episódio-piloto de “O Mecanismo”, nova série de José Padilha na Netflix. A crítica da temporada completa está aqui.
José Padilha é um diretor com força gravitacional em torno do próprio nome no Brasil e cada vez mais consolidado no mercado internacional. Sua segunda produção pela Netflix, “O Mecanismo” representa um novo desafio para o carioca por cobrir um evento histórico ainda em trânsito. Talvez por isso, tenha tomado um caminho com mais liberdades artísticas e menos acuidade aos fatos do que é de seu feitio.
A jornada da Polícia Federal contra a corrupção multinível da política brasileira começa em 2003, quando o agente Marco Ruffo (Selton Mello) encontra dados comprometedores no lixo do doleiro Roberto Ibrahim (Enrique Diaz). De forma muito similar a “Tropa de Elite“, Ruffo narra a sua cruzada pela justiça em um tom resignado e onisciente. Essa combinação entre análise crítica da sociedade e as experiências pessoais do narrador tem equivalente na Literatura: assim são escritas as memórias de Winston Churchill e, antes dele, Daniel Defoe falou da Guerra Civil Inglesa em seu “Memoirs of a Cavalier“. Mas há também um toque cínico em Ruffo, próximo às “Memórias Póstumas de Brás Cubas“, de Machado de Assis.
Não é apenas no seu protagonista que “O Mecanismo” se assemelha a “Tropa”: “Lava Jato” estabelece uma estrutura hierárquica opressora para o personagem de Selton Mello, voltada para impedi-lo de prosseguir com sua investigação. O roteiro martela (sem trocadilhos) a ideia de que o policial honesto é um idiota, pois não ganha nada com sua honestidade enquanto todos os corruptos prosperam à sua volta impunes. A importância da família para Ruffo é tão marcante quanto é para o folclórico Capitão Nascimento (Wagner Moura), ilustrada por uma cena numa barbearia tão caricata (e inverossímil) quanto a da Blitz em “O Inimigo Agora é Outro“.
Essa predileção de Padilha por personagens psicóticos passa do ponto em “Lava Jato”. A indignação de Ruffo pela forma como o “sistema” protege criminosos é retratada por reações fisicamente violentas e traços de psicopatia, com o policial amolando um machado, socando uma parede, depredando patrimônio público etc. Há um momento quase engraçado em que a narração em off fala sobre as ideias “martelando” a cabeça do protagonista, enquanto ele encara… um martelo.
Como primeiro episódio, “Lava Jato” aponta que “O Mecanismo” não está fortemente ligada aos eventos reais da operação que completou quatro anos recentemente. Ela pega referências do livro de Vladimir Netto e as romanceia a nível simbólico. Tem o mínimo padrão técnico esperado nas produções de Padilha: steady cams dão simultaneamente um ar documental às cenas e transmitem o desequilíbrio emocional nas relações. A fotografia saturada à noite e neutra durante o dia marcam um mundo de negociatas obscuras. O elenco passa credibilidade ao texto, que em alguns momentos transparece uma visão um tanto quanto maniqueísta da situação. E, por fim, deixa um belo gancho para motivar a audiência para continuar assistindo.
Todos os episódios de “O Mecanismo” estão disponíveis aqui.