Plano Aberto

O Nevoeiro 1×01 – Piloto

Este texto fala apenas do episódio “Piloto” de O Nevoeiro. A crítica da temporada completa está aqui.

Se alguém falasse para Stephen King que ele atirou pedra na cruz, provavelmente o autor do Maine escreveria uma história macabra sobre isso e venderia milhares de livros. Sua capacidade de aterrorizar com premissas aparentemente simplórias é inquestionável. Mais inquestionável do que isso, só o constante azar de King nas adaptações de sua obra para cinema e televisão. Na mesma semana que A Torre Negra mutila e expõe as vísceras de uma saga escrita durante quase 40 anos em um único filme de duas horas, o episódio piloto de O Nevoeiro, um de seus melhores contos, alterna entre boas ideias mal representadas e pura tosquice.

Começando pelo pior: (d)efeitos especiais

O Nevoeiro não é uma produção da Netflix, que apenas comprou os direitos de distribuição para os mercados fora dos Estados Unidos. Seu “berço” é o canal Spike, que tem como principais produtos os reality shows Lip Sync BattleBar Rescue. Mesmo o orçamento de televisão sendo normalmente limitado em relação ao cinema, isso não é justificativa para o nível de falsidade do nevoeiro de uma série chamada, bem, O Nevoeiro. Até porque soluções práticas como gelo seco são mais baratas do que efeitos digitais.

O nevoeiro é tão denso que envolve os personagens e esconde o fundo. Cenas como essa poderiam ser filmadas em estúdio, com fumaça real, sendo os demais elementos, menos importantes, inseridos digitalmente depois. Menos tempo renderizando vídeo e mais credibilidade no resultado final.

Apesar de Lev Kuleshov acreditar que a edição é a ferramenta definitiva de storytelling, ainda sou um entusiasta do fator humano em produções audiovisuais. E, por mais que as histórias de Stephen King sejam marcantes por pessoas “normais” precisarem subitamente enfrentar ameaças que fogem à lógica, é um motivo igualmente importante para seu sucesso editorial a capacidade destes personagens evoluírem com as dificuldades. E isso não é possível sem atores que saibam transmitir tais sentimentos (espanto, medo e coragem, principalmente). Personagens-chave precisam de intérpretes à altura, algo que o piloto de O Nevoeiro indica estarem em falta na série.

Morgan Spector dá indícios de não ser capaz de dar o peso necessário aos conflitos e dilemas de Kevin Copeland

Aspectos positivos, como o potencial de interação entre um militar sem memória, uma possível criminosa e um jovem com orientação sexual fluida, ou a própria caracterização da cidadezinha de Bridgeville como um personagem em si, parecem acidentes, “esbarrões” dos roteiristas na fonte original (a leitura do conto de King é essencial para todo fã de terror e suspense).

Olhe para estes personagens e se faça duas perguntas: se eles se revelarem traidores, não ficou óbvio demais? E se eles se revelarem aliados, será uma reviravolta que você já viu quantas vezes? O principal problema de O Nevoeiro é a falta de sutileza, algo básico na literatura de Stephen King.

O primeiro episódio se limita a criar a tensão entre os personagens e deixar claro que Bridgeville nunca foi um lugar harmonioso. A ameaça invisível – e a explicitude de King em criar uma ameaça literalmente invisível gera uma satisfação quase sexual – é apenas o estopim para as pessoas mostrarem o seu pior, desvelando para si próprios a brutalidade de cada um que é oculta pelas normas sociais, naturalmente suspensas em uma situação-limite como a proposta.

Ponto alto do piloto de O Nevoeiro, um lampejo de Stephen King em imagem: uma criança brincando ao lado de uma ofensa sexista, símbolo do que é uma cidadezinha do interior conservadora e hipócrita (a “vadia” em questão foi estuprada por um ídolo adolescente da comunidade)

Mais uma vez, uma premissa tão simples quanto incrível que parece não ter sido plenamente compreendida pelos produtores. Aparentemente, Stephen King jogou mesmo pedra na cruz. O Nevoeiro já tem seus dez episódios disponíveis aqui.

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