A crítica do primeiro episódio de O Nevoeiro está aqui. O texto abaixo fala da temporada completa e não contém spoilers.
Entre uma besteira e outra, O Nevoeiro se arrasta. Pobre na criatividade, ruim no casting e péssimo na produção, a obra de Stephen King segue sendo violentada. O pior de tudo: após eventos traumáticos para a sociedade ocidental como o Brexit e a eleição de Donald Trump, seu conto de 1980 nunca foi tão atual quanto agora.
A chegada de um nevoeiro sobrenatural separa a família Copeland. Enquanto Eve (Alyssa Sutherland) e sua filha Alex (Gus Birney) estão ilhadas em um shopping, Kevin (Morgan Spector) começa uma jornada para atravessar a cidade de Bridgeville e resgatá-las. Com ele, estão Mia (Danica Curcic), Bryan (Okezie Morro) e Adrian (Russell Posner). Em meio ao caos, os desconhecidos precisam aprender a confiar uns nos outros. Essa dinâmica é batida na ficção. Não pode ser considerada um desafio e tampouco é o que torna o conto original marcante. É nisso que O Nevoeiro peca: não explora seus pontos fortes.
Por mais que o nevoeiro seja uma ameaça real, ele não é nada quando comparado aos verdadeiros monstros: as pessoas. Na incerteza, o pânico escala para a brutalidade rapidamente. A ordem social é fraca e não resiste a indivíduos lutando pela sobrevivência. Diferente da completa desesperança, que resulta em apatia (algo presente no excelente O fim da infância, de Arthur Clarke), a chance de salvação, ainda que remota, empurra mesmo os mais sensatos para a barbárie.
O shopping de Bridgeville é, potencialmente, uma representação em pequena escala do que há de mais conservador nos Estados Unidos: não demora para um “código penal” ser promulgado e eventuais desvios de conduta que “coloquem o coletivo em risco” serem punidos com expulsão. Um eufemismo para pena de morte, uma vez que é praticamente impossível andar pelo nevoeiro sem ser pego pelas criaturas escondidas nele. A política do medo mantém a ordem e canaliza o ódio disforme em grupos marginalizados. O que torna o shopping um núcleo potencialmente interessante é a falta de desenvolvimento.
Um dos personagens é imigrante e outro apresenta traços de xenofobia, mas essa tensão nunca é trabalhada. Após o primeiro embate, o imigrante praticamente some. Gus (Isiah Whitlock Jr.), o gerente do shopping, mesmo tendo sua autoridade questionada em certo momento, praticamente não é ameaçado com motins ou tem seu maior segredo descoberto. Quando os sobreviventes se dividem em dois grupos, novamente uma decisão de roteiro não tem nenhuma consequência dentro da história. Até o conflito da jovem que se vê obrigada a conviver com seu suposto estuprador, algo que pede para ser explorado, é subaproveitado. Ainda que não exista uma única maneira de reagir a esta que é a violação definitiva, tornar um estupro num evento insignificante a ponto de não transformar a vítima em nenhum nível não apenas é uma incompetência de roteiro, mas também é um desrespeito com todas as mulheres estupradas que porventura assistam à série.
O outro núcleo é a igreja onde o padre Romanov (Dan Butler) e seu coroinha Link (Dylan Authors) acolhem pessoas enquanto tentam convencê-las de que o nevoeiro é um sinal de Deus. Nathalie (Frances Conroy), após perder seu marido, aparentemente perdeu também o juízo, relacionando o fenômeno a uma forma da “Mãe Natureza” cobrar seu preço pela violência do homem contra a ordem natural das coisas. Aqui, pelo menos, há um conflito e ele acontece: Romanov e Nathalie se colocam em posições antagônicas pela liderança daquele microcosmo, cada um oferecendo sua resposta mística para o fenômeno inexplicável. Apesar de melhor resolvido, também sonega desenvolvimento de personagens secundários, mesmo havendo um número limitado deles e um total de dez episódios. Acaba sendo inevitável que O Nevoeiro ande em círculos numa premissa simples que precisa de criatividade para ser desdobrada.
O que também atrapalha o envolvimento pela série é a sua pobreza técnica: praticamente toda filmada em um esquema de plano e contraplano e um uso de cores limitadíssimo no que tange a passagem de sentimentos e intenções, a fotografia de O Nevoeiro não acrescenta absolutamente nada às parcas ideias de roteiro, fazendo com que os episódios não levem a lugar nenhum. A trilha sonora, além de genérica e indecisa, foi mixada tão baixa que sequer preenche lacunas em momentos de suspense. A montagem é incompetente mesmo para criar jump scares, o recurso mais simples para prender a atenção do espectador e assustá-lo com revelações bruscas. E, quando fica óbvio demais que a série estagnou, alguma reviravolta mirabolante ocorre, mas nunca há a sensação de que um dos protagonistas esteja em perigo. Até o nevoeiro parece saber que eles precisam ser poupados.
Partindo de uma fonte original com pouco mais de cem páginas, abusando da boa vontade do espectador com soluções rasteiras e um elenco sofrível, é preciso saber a hora de parar. O conto de Stephen King trata sobre como o medo é capaz de transformar pessoas pacatas em animais e a sociedade numa anarquia. Como, seja pelas leis dos homens, sela pelas de Deus, o ser humano é cruel. O Nevoeiro não é uma saga de terror e, incapaz de cativar na sua primeira temporada, não deveria ter a pretensão de deixar pontas soltas para uma segunda. Tal qual a situação dos moradores de Bridgesville, não há para onde ir. Os episódios estão aqui.