Plano Aberto

Os Últimos Jedi: uma resposta a Donald Trump

Os Últimos Jedi Star Wars Snoke Andy Serkis Donald Trump

Para relacionar os rumos do novo filme da franquia Star Wars a Donald Trump, atual presidente dos Estados Unidos, este texto traz revelações sobre o enredo (spoilers) de Os Últimos Jedi. Leia nossa crítica sem spoilers clicando aqui.

Luke Skywalker: antes de tudo, um símbolo da esperança por dias melhores

Dentre seus inúmeros momentos de perspicácia, Star Wars: Os Últimos Jedi propõe que a Galáxia opera sob um princípio de ação e reação cármica, uma “Terceira Lei de Newton cósmica”. Todos os personagens buscam pelo equilíbrio pessoal, microscópico, mas o grande tema do filme de Rian Johnson é a inevitabilidade do equilíbrio coletivo, macroscópico. Pois o mal provocará o surgimento do bem; da tirania, virá a rebelião; da opressão, a esperança. Entre os extremos, a Força, esta energia que mantém a Galáxia coesa, pois mesmo os extremos antagônicos são partes de um todo.

A Resistência não existiria sem a Primeira Ordem, da mesma forma que Os Últimos Jedi não seria como vimos no cinema se Donald Trump não fosse o presidente dos Estados Unidos. E, por mais que o CEO da Disney diga “não existir declarações políticas“, Star Wars sempre foi uma franquia politizada. E este sequer é um ato isolado, basta ver como Blade Runner 2049 é sobre um grupo de excluídos fomentando uma revolução social e A Forma da Água trabalha com o amor entre diferentes numa trama em que os heróis são párias sociais e o grande vilão faz parte do establishment. Hollywood está combatendo o que Donald Trump representa da forma que sabe, com arte. “Luz grande, escuridão grande”, disse Luke Skywalker.

Mussolini (à esquerda, em segundo plano) e Hitler: exemplos clássicos de totalitarismo no século XX, fontes de inspiração para a ficção e alguns políticos do século XXI.

Três tipos de governo tendem para a supressão dos direitos. Os puramente autoritários, como a Itália de Mussolini, a Alemanha de Hitler e a Espanha de Franco, que suspendem os canais democráticos de gerência nacional e concentram o poder nas mãos de um ditador. Já as teocracias, como o Irã e o Vaticano, subordinam as legislações aos dogmas religiosos, sem espaço para debate social.

Quando um candidato a chefe de governo vende um discurso radical, polarizado, sem concessões a demandas de opositores e mesmo assim chega ao poder, cria-se o que Alexis de Tocqueville chamou de “tirania da maioria“. Quando as opiniões de um único grupo passam a pautar as decisões de uma administração, esta fica “surda” às opiniões contrárias. Donald Trump pertence a este terceiro grupo de autoritarismo, e a percepção de que parte da população dos Estados Unidos nunca lhe apoiará o motiva a polarizar exponencialmente seu discurso, criando um simulacro de democracia e preservando sua base de apoio, por mais que isso autorize atos cada vez mais violentos e supremacistas daqueles que se identificam com ele.

Donald Trump: a prova de que o medo, o ódio (e uma boa dose de pragmatismo) ainda ganham uma eleição.

Em Os Últimos Jedi, Snoke é uma fusão das três principais formas de ditadura: como “líder supremo”, todo o poder da Primeira Ordem emana de si, que o justifica por um alegado propósito místico/religioso de poder na Força, mas só se sustenta com a supressão de direitos e a mão de ferro contra qualquer um que se oponha a ele. Se Donald Trump defende neonazistas porque precisa deles para se manter no poder, Snoke persegue os membros da Resistência porque eles representam uma alternativa ao seu regime despótico.

Comparações entre os filmes anteriores, além de óbvias, são naturais. Inesperado seria se os ciclos da História saíssem de uma estrutura familiar. Snoke se parece com Palpatine porque o mundo sempre terá um déspota com sonhos megalômanos e um ambiente favorável para florescer com seu discurso tão vazio quanto magnético. Ou a utopia trumpista de fechar fronteiras para garantir “a América para os americanos” é muito diferente do Lebensraum defendido por Hitler, que buscava suprir as necessidades territoriais do povo alemão? No Brasil, não seria Jair Bolsonaro uma versão repaginada do general Sílvio Frota, que via comunistas em todos os lugares e saiu da vida pública para “punir” o país quando não conseguiu impor sua candidatura à Presidência em 1979?

Kit inicial para autoritarismos: promessa de volta a uma “era de ouro”, alegada honestidade sobrepondo opiniões controversas, patriotismo exacerbado e “Deus no coração” para guiar todas as decisões.

A inovação de Os Últimos Jedi está na quebra de expectativas sobre quais personagens assumirão os papéis das franquias passadas. É o filho de Darth Vader que derrota o Império, mas agora seu neto é peça central da Primeira Ordem. Luke, o “último Jedi”, recolhido em um planeta escondido, despontava como o novo Yoda: acaba sendo o novo Obi-Wan Kenobi, o mestre por necessidade – sequer concluíra seu treinamento – que ainda não estava pronto para o dever e fracassou por isso. Rian Johnson tira do universo de Star Wars sua inocência infantil de que Davi pode matar Golias. Sozinho, realmente não pode. Mas pode fomentar a insatisfação nos seus semelhantes. Somente as massas podem reaver o que delas é de direito.

Ao lado da Estrela da Morte de Palpatine, uma arma móvel colossal criada para manter a Galáxia obediente pelo meno, o plano de Snoke é cruel. Se aproxima da distopia 1984, de George Orwell: “se você quer uma fotografia do futuro, imagine uma bota pisando num rosto humano para sempre”. Matar todos os membros da Resistência, sem acordos de rendição ou prisões, e Luke Skywalker, este num exílio voluntário em Ahch-To esperando pela morte, são decisões com o objetivo de pisar para sempre no “rosto” da Galáxia, retirando dela não uma chance de reverter o golpe de estado, mas de sequer imaginar que isso possa ser feito. O “Socing” de 1984 faz isso reinventando o idioma (algo que Donald Trump começou a fazer na mesma semana em que Os Últimos Jedi estreou). Snoke pretende obter êxito matando a esperança.

Kylo Ren diz defender “o novo”, mas sua visão de “estabilidade e progresso” é igual à das velhas ditaduras.

Todo regime de exceção chega ao poder com um discurso de mudança, normalmente uma “volta ao passado glorioso” (“Faça a América Grande de Novo” / “A Primeira Ordem vai restaurar a estabilidade dos tempos do Império“). E todo regime de exceção começa a alterar a lógica organizadora do mundo aos poucos, atingindo indivíduos marginalizados primeiro. Os planetas da Orla Exterior conhecem uma estabilidade diferente dos ricos planetas do Núcleo. Ou, como George Orwell escreveu em A Revolução dos Bichos, “todos os animais são iguais mas alguns são mais iguais que os outros”.

Como Rey, Rose e Finn não têm famílias importantes que justifiquem o seu “dever” em lutar pela Resistência: o fazem porque querem.

Canto Bight, a “Las Vegas” do planeta Cantonica, oferece luxo aos ricos com exploração indecente de miseráveis. A Primeira Ordem oprime as massas com armamentos comprados dos milionários e permite que estes usufruam dos pagamentos (feitos com dinheiro de impostos. Um governo ditatorial, mesmo numa space opera, recolhe impostos) em centros de lazer onde os trabalhadores são os mesmos explorados que pagam impostos para a Primeira Ordem comprar mais armas dos milionários, que usufruem dos pagamentos em centros de lazer… regimes de exceção sufocam a liberdade das pessoas para preservar a liberdade do capital. Liberdade tamanha que os milionários de Cantonica não se incomodam em vender armas também para a Resistência. Dinheiro não aceita desaforos e o capitalismo não tem compromisso com a moralidade.

Todas essas ações têm como objetivo final redesenhar a sociedade aos moldes de quem está no poder, preservando-o nas mãos do mesmo grupo (os regimes autoritários da vida real) ou do mesmo indivíduo (como em Star Wars, onde a imortalidade é alcançável). A “bota pisando num rosto humano para sempre”. Em 1984, o governo da Oceania falsifica a História no “Ministério da Verdade”. Donald Trump chama notícias que expõem seus interesses escusos de “fake news” e sua equipe oferece “fatos alternativos“. A Primeira Ordem chama ditadura de “estabilidade”. No Brasil, há candidato que chame vitória em eleição de “missão de Deus“.

Escapa da compreensão de Snoke, Trump ou de qualquer protótipo fascistoide do século XXI, e aí reside o poder de Os Últimos Jedi, que é impossível desequilibrar a Força por muito tempo. Se existe um Kylo Ren, neto de Darth Vader, necessariamente surgirá um contraponto para combatê-lo. E, iconicamente, este contraponto é uma mulher, filha de lixeiros desprezíveis, trocada por bebida, sem o direito sanguíneo de Luke ou a predestinação messiânica para grandes feitos do próprio Vader. Rey existe porque precisa existir. E este “herói ordinário”, também representado por Finn, “a ralé rebelde”, diz a todos aqueles presos em uma era de escuridão que é possível se erguer contra a opressão e mudar o mundo.

Rey: o rosto da Rebelião não tem ascendência, posses ou história. É a mulher comum, a representação de todos nós. Não é preciso ser berço para salvar o mundo.

Mesmo que os cães raivosos estejam em posições de poder e não haja perspectiva imediata de vitória, a própria sobrevivência já é um ato de rebeldia. E é essa rebeldia que inspirará os demais a devolver o equilíbrio à Força no final. Talvez por isso uma petição exija a saíde de Os Últimos Jedi do cânone. Querem transformá-lo em fato alternativo.

Sair da versão mobile