Os últimos dois filmes de Bong Joon-ho evidenciam facilmente como o sul-coreano possui o domínio estético necessário para transitar entre gêneros de forma fluida e a serviço do fortalecimento de suas ideias. O longa de ação “Expresso do Amanhã”, de 2013, e o drama da Netflix “Okja”, de 2017, são bastante diferentes em suas formas de desenvolver as ideias. Mesmo com essa variedade na forma, as duas obras possuem semelhanças temáticas claras. Ambas mostram mundos totalmente afetados pelo capitalismo. A primeira, da perspectiva humana, criando uma narrativa que utiliza vagões de um trem como alegorias para as classes sociais. A segunda, analisando os efeitos desse mesmo capitalismo na natureza.
“Parasita”, novo filme de Joon-ho que rendeu ao cineasta a Palma de Ouro em Cannes, tem muito em comum com “Expresso” e “Okja”, mas com ainda mais sofisticação, levando o cinema do diretor a um novo patamar. No longa, Joon-ho parte da comédia e passa pelo terror para, finalmente, chegar ao drama, utilizando os três gêneros para, novamente, fazer um estudo do capitalismo e de como ele afeta nosso tato social e percepção do mundo. Retornando ao conflito de classes já trabalhado em 2013, Joon-ho dessa vez analisa não a divisão da sociedade, mas a relação simbiótica criada pelo sistema econômico dominante no mundo.
O primeiro ato sugere uma comédia despretensiosa, retratando a relação entre uma família da classe trabalhadora que trabalha para uma família da elite. Mesmo que, a priori, a despretensão esteja evidente em cada piada e ironia utilizada pelo roteiro, a obra sempre mantém uma tensão que sugere algo mais complexo por trás dos estereótipos. As pretensões amorosas do jovem protagonista Ki-woo (Choi Woo-shik), por exemplo, são meras réplicas de ideais a ele introduzidos por meio de seu amigo Min (Park Seo-joon). Essa “importação” de ideias e ideais não se limita a relações pessoais: o apreço do caçula da família burguesa pela tradição dos nativo-americanos, por exemplo, também ressalta a característica do capitalismo de esvaziamento da cultura, que é transformada em produto – a citada perda de tato, que resulta em uma visão embaçada e superficial de tudo que não seja o dinheiro e que impede o trabalhador de perceber que está sendo explorado pelo patrão, que é um verdadeiro parasita, sugando os esforços da classe trabalhadora.
Todavia, o foco de Boon-ho está mesmo em criar paralelos ao estudar os meandros das classes. Ao lançar esse olhar, o diretor acertadamente divide os atos por gêneros. Se no primeiro ato, o desprezo do pai da família pobre, Kim (Song Kang-ho), por insetos é tratado como uma mera piada, no segundo e no terceiro, quando os ricos o tratam da mesma maneira, o terror e o drama entram em cena para expor o absurdo dessa relação ditada não por afeto, respeito ou ética, mas pela posição social. Com isso, “Parasita” faz um interessante aprofundamento daquilo que, inicialmente, é engraçado, e que aos poucos torna-se melancólico e cruel.
Para fortificar e enlarguecer esse estudo de classes, Boon-ho constrói uma mise-en-scene baseada em paralelos visuais e na relação dos personagens com os espaços. O lar da família pobre, por exemplo, é filmado de perspectiva semelhante ao do “bueiro” encontrado embaixo da mansão dos patrões, mostrando como, nesse modelo de sociedade, os não abastados são relegados a lugares inferiores, tanto geograficamente quanto socialmente. Os dois ambientes também passam a ser fotografados, aos poucos, de forma parecida, com cores e luzes que tornam ambos os espaços sombrios e sujos.
Para além da óbvia luta por espaço inerente aos conflitos entre a família principal e os dois outros núcleos – os outros trabalhadores e a família burguesa –, esses espaços também são importantes durante os deslocamentos dos personagens. Por exemplo, quando os trabalhadores estão sob risco, Joon-ho os filma sempre descendo escadas, como se o retorno aos níveis mais baixos da cidade fosse inevitável, já que os trabalhadores são figuras totalmente deslocadas nos espaços da elite – algo que Kim-woo demora, mas nota ao sentir-se totalmente deslocado em um evento da elite.
O triunfo do longa reside, porém, na forma como Joon-ho insere o despertar da classe trabalhadora diante desse mundo injusto em que vive. Inicialmente, o encontro de dois núcleos de trabalhadores resulta em luta por espaço, mas o conflito faz com que ambos percebam como são escravizados pelo sistema, o que faz com que, ao fim, ambos redirecionem seu ódio para quem está, social e economicamente, no altar. É irônico, então, notar como os insetos são utilizados por Joon-ho em “Parasita”. Em “Expresso”, baratas são transformadas em ração para os pobres. Se pensarmos que, em “Parasita”, as baratas são os próprios pobres, logo percebemos como o sul-coreano mostra como, no sistema vigente, a classe trabalhadora acaba por se comer e se sabotar, lutando para ver quem servirá à burguesia.
Retornando à relação do filme com seus gêneros, é necessário pontuar: o fato de Joon-ho começar com a comédia e chegar ao drama não parece, nem de longe, ser acaso ou coincidência. A sátira é a porta de entrada para a descamação do universo do filme. O poder (financeiro e social) é o caminho que expõe as fragilidades e defeitos do mundo; é o poder que mostra como, no capitalismo, o indivíduo nunca é a prioridade. O lucro e a manutenção do privilégio sempre virão primeiro. O parasitismo, inicialmente, parece residir na busca dos pobres pela sobrevivência por meio da exploração dos ricos, mas Joon-ho revela que, na verdade, o parasitismo habita na forma como a elite explora a classe trabalhadora, que se mata para sustentar o poder de quem está acima. À classe trabalhadora, tratada como um inseto, um ser inferior que serve apenas como mão de obra, resta despertar e agir.