Inegável o efeito da pandemia nos lançamentos musicais das últimas semanas. Até as faixas mais festivas já chegam aos nossos ouvidos envoltos pelo mais fino filme de abatimento. Nessa quinzena, fomos do shoegaze experimental ao retorno barulhento de Fiona Apple, com eventuais sorrisos de faixas dos velhos conhecidos que tentam nos alegrar mesmo que as circunstâncias não permitam.
Falando sobre Fiona Apple, é impossível escapar do efeito de seu Fetch the Bolt Cutters no momento que o mundo vive. Um trabalho caseiro que carrega em cada frase e acorde um senso de ansiedade e incerteza que o transformam em algo quase premeditado. Nesse tom, vamos à Playlist da Quinzena, ou, Hora da Fiona Apple.
Rack of His – Fiona Apple
Fiona Apple como cronista. Em um disco de explosões, ela mantém o tom observacional até em momentos de caos. Expande a sonoridade enquanto se concentra em gestos, um olhar fixados em detalhes. Músicas sobre relacionamentos românticos que ascendem essa esfera para apontar comportamentos universais, como Rack of His. Talvez a faixa mais que mais se assemelhe aos seus primeiros lançamentos.
Newspaper – Fiona Apple
Há quem veja na obra de Fiona Apple um recorte elitista, ou até inacessível. É verdade que ela tenha se afastado completamente de uma estética popular e que esse tipo de comentário venha dos mais profundos círculos do inferno virtual que são os fóruns musicais. É verdade também que ela tenha se aproximado de experimentalismos que podem soar estranhos aos desavisados e aliene quem não esteja interessado em uma relação reativa com a música. Desde seu segundo disco, Fiona opera em modos que vão do observacional da crônica aos detalhes banais do romance, esculpindo ideias em sentimentos latentes. Seus últimos trabalhos expandem em alguns desses sentimentos, de forma mais crua e rasgada, um vislumbre do que ela vinha escondendo em faixas mais higienizadas do início de sua carreira. Essas se viabilizam, sim, por essa faceta experimental. Porém nela é imbuída a impressão de que a obra, por mais que os críticos cravem o contrário, não é perfeita. Fiona alcança reações primais dos ouvintes, pela imperfeição. Sejam ruídos, balbucios, resmungos, latidos e camadas construídas de aparentes erros de execução que evocam tanto a familiaridade quanto a raiva e revolta. Por si só, sentimentos ou ideias inacessíveis, que ela aproxima a um campo material, mais que pessoal ou sensorial. Newspaper é um exemplo desse aspecto, um grito de incômodo e irritação esculpido em algo que mesmo que experimental, soa possível e sentimental. Aqui é que se confirma que como musicista, Fiona consegue extravasar sua vida e criar algo gigante, algo além-corpo. Fala sim sobre si, mas de uma maneira evasiva o suficiente para convidar o ouvinte a preencher as lacunas com suas próprias experiências. É a rejeição do argumento que seu trabalho carrega um recorte alienador. Todos estão naqueles versos.
Drumset – Fiona Apple
É no sentimental que Fiona Apple se encontra consigo mesma, o aspecto de seu trabalho que não muda desde os anos 90. Mesmo que esse sentimentalismo tenha sofrido mutações plásticas, que compliquem uma leitura objetiva e gerem leituras hostis. Em Drumset, o instrumental sincopado é o que dá forma ao medo do abandono. Aqui sim, a melancolia, conceito exaustado de todas as formas imagináveis, é empregado como mais uma textura de um som que evolui segundo a segundo. Dá pra dizer o que quiser sobre Fetch the Bolt Cutters. Jamais que é um disco tedioso.
Only the Strong – Laura Marling
Não fosse o absurdo que Fiona Apple arremessou na cabeça do mundo, o novo disco de Laura Marling, Song For Our Daughter, talvez levasse o título de melhor álbum da semana. Um trabalho simples, de lirismo direto e melodias sem delongas, mas marcado por um sentimentalismo honesto.
@ Meh – Playboi Carti
Descende dos céus como uma comunicação alienígena somente decifrável daqui algumas décadas. Carti chama pra briga, de forma criptografada. Não precisa entender pra sentir.
The Adults Are Talking – The Strokes
2020 segue estranho. Mesmo com últimos trabalhos não tão irregulares quanto o imaginário popular faz parecer, o novo disco do Strokes parece ter caído nas graças do povo. The Adults Are Talking é representativa do espírito reflexivo do álbum. Mesmo com as guitarras juvenis de sempre, agora com olheiras carregadaças e uma barriga de whisky, o peso do tempo bate na porta de Julian Casablancas.
forever – Charli XCX
Primeiro produto direto da quarentena, forever é uma cruza do esmero melódico e poluição digital que compõe todas as fases musicais de Charli XCX. Com um vídeo à Jonas Mekas, a faixa faz ebulir o anseio da proximidade com outros.
Outra Cidade – Giovani Cidreira com Moullinex e iZem
Com deslocamento inviabilizado, essa faixa bate com ainda mais significância. Sobre a estranheza de se perder e explorar a vida longe de casa, Outra Cidade é o encontro do compositor baiano Giovani Cidreira com os DJs Moullinex e iZem. As faixas dessa quinzena podem ser quase todas descritas com Melancolia, mas pra essa, isso já não seria justo. Saudade exprime “nostalgia de casa, lar” apenas em português, presumo eu que pra ocasiões como essa.
Anyone Can Play Guitar – Midwife
Tá bem, pra não queimar cartucho sobre melancolia, que tal imaginar uma banda de shoegaze encabeçada por Angelo Badalamenti? Não é exatamente o que o segundo disco do Midwife traz mas fica aí o exercício pra se passar o tempo.
Aries – Gorillaz, Peter Hook, Georgia
Strokes, Gorillaz, The Killers…A nossa guarda baixa e tudo que, algum dia, viramos o nariz volta pra nos assombrar. Última faixa do projeto de álbum-infinito Song Machine, é mais um esforço em demonstrar a elasticidade musical do grupo que, mesmo assim, remonta aos seus anos de ouro.
Faixas-Bônus
Shugar Water – Jackie Lynn
Te Queria – Lido Pimienta
Mulher (Remix) – Linn da Quebrada com Badsista e Laysa
The Other Half – Hamilton Leithauser
Who’s Gonna Save U Now? – Rina Sawayama
Isolation – Dirty Projectors
Sua Alma – Skinshape e D’alma
Waiting on Design – Westerman
Idontnknow – Jamie xx
In a Good Way – Faye Webster
Brasil – EOB
Chocolate Souffle – Shabazz Palaces
I Contain Multitudes – Bob Dylan