Entender as circunstâncias biológicas, e psicológicas, que resultam em sonhos ou pesadelos não é tão comum quanto buscar o simbolismo dessas abstrações que interrompem a noite. Assim como em sonhos comuns e que nos invadem com frequência, as canções de amor nascem de uma série de variáveis que são únicas ao narrador. Ou melhor, por quem as sonha. Musicar um amor perdido ou o desamparo de um rompimento são atos simples de autobiografia, que contam uma história universal através das especificidades, mesmo que os elementos que as formam sejam fragmentos de uma visão individual, ou, no caso de um sonho, a resposta para um mistério interno.
Assim como a estranheza de um sonho, a obra de Kelela resgata cenas comuns da banalidade do amor, através de imagens tortas que anseiam ser compreendidas, não decifradas. Seus trabalhos passados ecoam nos seguintes, cascateando em continuidade, usando de símbolos surreais para racionalizar episódios que pontuam as memórias de um relacionamento. Não há tanto a ser decifrado em um coração partido, tanto quanto há muito o que se decifrar nos nossos percursos interiores, nas correntes que não entendemos e que, para o nosso desespero, nem sempre prevemos, mas sempre nos guiam. A memória sonora criada por Kelela conflita com seu impulso lírico de autocompreensão, em face à estranheza de seus sentimentos. Realismo mágico transmutado em alquimia musical, forjado com excelência por uma voz única e que brilha como compositora.
Seu novo disco, Raven, retoma as letras diretas (e por ora esqueletais) presentes desde os EPs e mixtapes anteriores. Elas são o núcleo narrativo que envolve os mistérios sônicos de seus projetos. Isso porque a força de criação de Kelela se dá justamente pelo simples, frente ao estranho, pelo confronto entre som e palavra. Suas canções de amor não são alegres, mas revelam trechos e episódios de um romantismo vibrante, que lamenta as perdas afetivas sem jamais explodir pelo melodrama. As 15 faixas ressoam a rejeição, o abandono e as dúvidas do amor com uma potência que se ilustra pela produção sugestiva, mas grandiosa, assinada por nomes da música eletrônica como Bambii, LSDXOXO, Kaytranada e Badsista, entre outros.
Como nos cursos d’água que ilustram o material gráfico do disco, a cantora-compositora navega por si em uma navegação muitas vezes cega, mas sempre autoconsciente. Como se ela soubesse que precisa de ferramentas para não se afogar, mas navegar sem rumo até as encontrar fosse sua única possibilidade de salvação. Raven representa um momento de afirmação para Kelela e desenha um instinto de autopreservação: uma ideia ausente na maioria das canções de amor, contemporâneas ou não. As águas metafóricas que materializam o espírito do álbum em imagem e som, funcionam não apenas como agentes de uma limpeza existencial, mas como um escudo. O ciclo sonoro das faixas traz as ondas do mar como um marcador temporal, começando com o mergulho (não metafórico) ouvido ao final de Washed Away, que abre o disco. Nela, Kelela canta como um mantra:
“A bruma, a luz, a poeira que assenta a noite
A esperança, o anseio, desaparecem, olhos embaçados
Cavalgando em raios de metal
Seguindo em frente, uma mudança de rumo, e eu estou distante”
A partir dessa submersão, o disco se abre para a sua história com Happy Ending, sua segunda faixa. Kelela cessa de falar de si e retoma seu último pensamento, o aplicando ao seu par: “Distantes demais / Distantes demais / Sempre soube que poderíamos ter sido algo a mais”. As águas de Raven também servem como reflexo de aceitação: de si e das feridas de um relacionamento, onde o não-dito é remoído e se torna motor da mudança. Um senso de auto realização que domina o lírico do álbum, traz à superfície o que Kelela descobre ao se aprofundar cada vez mais no coração de seu oceano. Faixas como a que dão título ao álbum (Raven), Contact e On The Run exploram elementos do Techno e R&B submersos em uma ambientação que monta as águas profundas em que Kelela se encontra. Na dupla final de canções, Enough for Love e Far Away, o álbum retorna ao ponto de partida, mas com um entendimento ainda mais firme de suas ideias. É possível amar, enquanto se está perdido? É possível amar com feridas abertas, que precisam de distância para serem curadas? Raven fecha seu ciclo afirmando que pela compreensão de sentimentos, há a transformação. Isso não impede que a negação e o escapismo tentem nos afundar em um mar de confusão. Ao encará-los, o fôlego para voltar ao chão retorna.