A projeção de luz e sombra do discurso cinematográfico apresenta a imagem, composta de elementos do real, com o seu próprio tempo, abstração, e “para quem o pensamento é o mundo, e a palavra a áudio-visualidade, acabam finalmente numa roda gigante de um sistema solar em pleno parque de diversões do universo” (BRAKHAGE, p.346). É a abstração do tempo inevitável. O tempo que conhecemos na realidade é desconstruído no filme até mesmo quando se tenta alcançar a ilusão de tempo real. Não existe tempo real e, muito menos, tempo real na imagem. O que existe, no cinema e na realidade, é apenas ilusão mágica.
O mais variado conjunto de técnicas para a construção do discurso cinematográfico perde possibilidades quando se tenta alcançar o inalcançável, o tempo real, a “decupagem clássica” e suas possibilidades se perdem na intenção de gerar uma emoção e não uma questão. A perpetuação de uma estrutura de tempo, na realidade e no cinema, é a perda da possibilidade de emoção da montanha-russa. Sentir leva tempo. Ou não. A ilusão de fidelidade ao reproduzir o movimento dos objetos como no mundo real gera reações imediatas (XAVIER, p. 18) e não reflexões vindas de um brinquedo do parque de diversões do universo de tempos abstratos.
O sentir não se encaixa no tempo real, cada um sente no seu próprio tempo e é aí que entra a figura do diretor/roteirista/autor. São eles que vão construir, junto do montador, o tempo abstrato de cada elemento real na imagem, e esses elementos ao se apresentarem dentro de um recorte de tela e montagem deixam de pertencer ao campo real, o que fica “é algo semelhante a um conceito mental, o que pode parecer um cavalo ou pode, como no caso da pintura abstrata, não carregar nenhuma relação visível com um objeto real” (XAVIER, p. 17).
Quando Alain Resnais, em Hiroshima mon amour, preenche a tela com texturas de corpos embolados que dura tanto tempo, que alterna de ângulo e toque, você recupera, no fundo do universo das recordações, as peles que tocou naquela mesma posição. Não é a mesma posição. Não é a mesma pele. Não é o mesmo tempo. A imagem é uma representação exata e inexata, na mesma intensidade, do que você acredita ser essa emoção. E quando você se dá conta a roda-gigante começa a girar de novo e você já está em outro lugar. Em outro universo. Em outra abstração. No caso de Renais, aquela textura de corpos que ganhava brilho, suor, maciez, que parecia ser a única coisa importante no universo da narrativa, ganha o ambiente no corte seguinte. A câmera que assume o olho da personagem e te leva a caminhar pelo hospital que ela afirma ter visto de verdade. A ilusão está em você acreditar que também está vendo o hospital, mas não está. É algo semelhante, mas é outra coisa. É outra coisa porque o hospital se apresenta a partir de sistemas solares de um universo infinito. Não foi preciso subir cada degrau das escadas com um movimento de câmera e um personagem visível, para que eu e a personagem andássemos em direção a entrada do Museu de Hiroshima. Bastou planos estáticos, com tempo, para que meu olhar caminhasse pelas linhas marcadas da escada e eu sentisse que cheguei no Museu.
Levando em consideração o que George Tice diz em entrevista, “só estamos aptos a ver, aquilo que espelha nossa mente num momento especìfico”, falarei sobre escadas a partir de agora. No parque de diversões do universo da minha mente eu vejo os brinquedos pelas linhas e formas que o contraste da luz e sombra cria quando se apresentam na tela. Eu escolhi viajar nas ilusões mágicas da imagem cinematográfica a partir das linhas dos brinquedos desse universo infinito e abstrato. Inclusive, o tempo poderia ser representado por uma linha? Escolhi escadas por um simples motivo: o tempo, o ritmo, o ângulo, o plano.. que você dá para essas linhas pode dizer e representar infinitos universos para uma mesma coisa. A questão aqui é como eu estou subindo, ou descendo, as escadas de uma realidade que não a minha. Eu subo. Desço. Perco o ar. Ganho fôlego. E sinto.
Falarei primeiro das escadas da Maya Deren, em Meshes of the Afternoon, por outro simples motivo: eu senti muito. São nove universos da Maya para a escada, mas apenas três espelham a minha mente no tempo da sua incidência. Os elementos que vão compor o subir e descer das escadas de Maya tiram a narrativa de uma “unidade fechada de conceito” (XAVIER, p.21) e quando você vê os ângulos da câmera, os cortes, a (i)mobilidade e o tempo, você entrega o bilhete, aperta os cintos e espera o sentir. Eu subi a escada do telefone, no minuto 1:58, de forma simples, sem qualquer dificuldade, talvez estar olhando para baixo me deixe um pouco tonta. Não sou eu que estou olhando para baixo, mas eu estou tonta. O eixo do movimento da câmera é o centro da curva da escada, meu olho caminha e faz a curva junto com as linhas da escada, no mesmo ritmo, e eu já estou no topo. Estava tonta, mas cheguei. Ela chegou. A escada da faca, no minuto 4:32, é outro universo que machuca, demora e cansa. Estou mais lenta agora, subo e continuo subindo com o movimento da câmera que acompanha os pés, mas não chego a lugar nenhum. Os planos em si não levam muito tempo, mas para esse espaço de tempo os pés dela são lentos, a sombra dos degraus é larga, ela poderia ter subido muitos degraus naquele plano, mas um brinquedo desse universo infinito da ilusão me impede de subir mais rápido. O plano seguinte eu sinto o infinito, a tela é cortada pela linha diagonal da escada e a sensação de profundidade me mostra quão longo foi esse caminho, a câmera que olha de cima, mesmo parada, me faz caminhar degrau por degrau e ter ânsia do topo, a profundidade no espaço visado pela câmera torna mais sufocante e difícil a subida. A escada do espelho, no minuto 7:10, é o desequilíbrio da minha própria mente. A câmera encara ela subir, o olho da câmera aguarda ser alcançado e quando ele cai para direita, sobrepondo a caída da personagem para a direita também, o desequilíbrio das minhas emoções é inevitável. O universo tá sem eixo. Sem chão. O único apoio é a parede e ela me joga para o outro lado, tornando impossível alcançar o topo. O espelho.
A escada do mundo novo de Agnès Varda em Le Bonheur, no minuto 32:22, é o portão do novo mundo que se abre, a o plano estático observa os passos lentos da noiva, que desce risonha e, assim como ela, eu desço a escada com a serenidade e tranquilidade do mundo que me espera.
Em My Life to Live, Jean-Luc Godard, eu subo as escadas, no minuto 47:33, acompanhada pela primeira vez. A câmera olha do chão, estática, as linhas formam uma diagonal contorcida, eu subo as escadas com o passo a passo dos pés da personagem. Eu percebo que estou muito na frente, me viro, espero impaciente, minha companhia chega e vamos. Foi aqueles minutos que eu vou rápido de mais e tenho que ficar esperando o tempo do outro.
A conclusão, abstrata e mutável, que chego é tão simples quanto todas as palavras desse devaneio: ver os sistemas solares desses parques de diversões dos universos é sentir o tempo de cada brinquedo, deixar que ele te leve a subir e descer as escadas, deixar que seu olho caminhe pelas linhas de contraste da luz e sombra. A miragem da imagem cinematográfica requer alucinação abstrata para a destruição da decupagem clássica. É o parque de diversões do universo infinito e livre da merda do tempo. Estar no espaço é a possibilidade de abstração. Os sistemas são as técnicas, que não devem ser esquecidas. E cada parque de diversão te apresenta um brinquedo para abstração do sentir. E a palavra é o mundo. O filme um discurso que “no princípio era o verbo”. Eu só sou capaz de ver aquilo que espelha o universo abstrato das minhas recordações e o cometa de luz deixa rastros. Será que subir e descer as escadas é inevitável? O tempo uma linha reta?