“Nós” é um fenômeno de bilheteria no mundo, se tornando a maior estreia de um terror original da história. E não é pra menos: o filme de Jordan Peele assusta, diverte e questiona. Saímos do cinema com mais perguntas do que entramos, o que ajuda a aumentar a vida útil da obra.
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Passada uma semana, é possível que você ainda esteja se perguntando sobre alguns símbolos escolhidos por Peele para reforçar os temas de “Nós”. Esse artigo vai oferecer respostas. Embora algumas sejam bem óbvias, muitas são mera especulação, sem nenhuma prova definitiva. Esse é o tipo de texto que funciona melhor quando você interage. Use a caixa de comentários para dizer as suas teorias!
A partir daqui, o texto contém SPOILERS de “Nós”. Se você ainda não assistiu ao filme, deixe essa aba aberta, vá ao cinema e volte aqui depois. Você foi avisado!
Uma bem fácil pra começar. O nome original do filme (“Us”) é um acrônimo de United States. O próprio Jordan Peele brincou com o tema em seu Twitter. Isso permite interpretar o filme como uma metáfora sobre os Estados Unidos e sua histórica luta de classes, com um grupo “superior” e outro “inferior”.
Quando os pais de “Adelaide” (avisamos que esse artigo tinha spoilers…) a levam à psicóloga, perguntam como fazer a filha voltar a falar. A profissional responde que eles devem estimular a filha a desenhar, dançar, “qualquer coisa que nos ajude a saber a história dela” (“anything that help us to know her story”). Admitindo que “us” é “U.S.”, Peele diz nas entrelinhas que a arte para uma criança negra, independente da forma, é uma ferramenta identitária. “Qualquer coisa que ajude os Estados Unidos a saber a história dela”.
Essa é a primeiríssima informação que “Nós” fornece ao espectador. Com o decorrer da trama, aquele verdadeiro país-embaixo-do-país se torna a fonte do principal conflito do filme.
Um túnel representa, no nível mais simples, uma jornada. O objetivo final (“a luz no fim do túnel”) é valorizado pelos percalços do trajeto. A jornada em si também pode ser interpretada como uma metamorfose, uma vez que o primeiro “túnel” do qual alguém tem notícia é aquele pelo qual passa ao nascer, deixando para trás a classificação de feto e se tornando recém-nascido.
Quando os duplos saem do subsolo para matar suas contrapartes, estão em busca de um renascimento, abandonando as trevas da prisão e indo para a luz de uma vida livre. Perceba que “Red” usa exatamente o argumento do aprisionamento para justificar sua motivação.
Como você deve ter imaginado, a placa do morador de rua se refere a um versículo da Bíblia. “Portanto assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei”. É uma mensagem bem direta: o “mal” são os duplos do subsolo, de quem as contrapartes não terão escapatória e nem a quem pedir ajuda. Mas vamos um pouco além.
O profeta Jeremias foi notório crítico da conduta do povo de Israel e de seu desrespeito às leis do pacto entre Deus e os homens. No Livro de Jeremias, aponta o castigo a ser recebido. No livro seguinte, o das Lamentações, chora pela decadência que atingiu seu povo após a destruição de Jerusalém. O ataque sangrento não surge do nada, mas é o resultado de décadas de negligência.
No tarô, o número 11 representa justiça e mudança. É uma amplificação do 1, que marca um novo começo. 11:11, hora que aparece no relógio do quarto, é um sinal de despertar espiritual e ascensão. Exatamente, ascensão.
Não por acaso, as cores predominantes na paleta de “Nós” são branco, vermelho e azul, as mesmas da bandeira dos Estados Unidos. O segundo ato do filme, quando a família Wilson entra em fuga, tem as três cores com funções bem claras.
Os duplos usam macacões vermelhos. Cada Wilson usa, pelo menos, uma peça de roupa branca. A ação acontece numa noite de céu claro, com estrelas visíveis. Na bandeira, as faixas brancas e vermelhas representam as 13 colônias fundadoras, enquanto cada estrela representa um estado atual dos Estados Unidos.
Outra estrela bem visível é a dourada, presente no frisbee que cai em “Adelaide” na praia. Os eventos de “Nós” ocorrem em Santa Cruz, Califórnia, o “Estado Dourado” (Golden State). Uma das possíveis razões para este apelido vem da Corrida do Ouro do século XIX, quando as pessoas cavavam túneis em busca de ouro.
Tudo se encaixa, não é mesmo?
“Red” denuncia que a vida no subsolo é uma mera “sombra” da vida na superfície. Na cena da praia, Jordan Peele escolhe um ângulo onde as sombras parecem se mover mais do que as pessoas que as projetam. É um conceito apresentado física e simbolicamente.
Na psicologia analítica/junguiana, o arquétipo da Sombra representa a face mais animalesca da psique humana: egoísmos, frustrações, o “eu escondido” que se revela em momentos de tensão e conflito. O que Peele faz é materializar esses dois lados da mente humana (consciente/altruísta e inconsciente/egoísta) e trabalhá-los individualmente.
Assumindo que o filme é uma metáfora sobre os Estados Unidos, os personagens da superfície representam o “ego nacional”, a face “ponderada” do país, enquanto os personagens do subsolo são seus desejos inconscientes, negligenciados e reprimidos.
Este símbolo dialoga diretamente com o das sombras. Espelhos refletem a luz, que por sua vez simboliza verdade e esclarecimento. Espelhos, portanto, refletem “o que é”.
Espelhos também representam o “olhar para dentro”. Quem olha para um espelho está tentando descobrir quem realmente é, num nível subconsciente. Quando Adelaide vai à casa dos espelhos, “liberta” a sua Sombra. Bem literal.
Mais do que a comida das sombras, o coelho tem um simbolismo perfeito para a história de “Nós”. Por sua famosa capacidade de reprodução, são associados a novos começos. Talvez por isso, o coelho e a Páscoa sejam quase indissociáveis na nossa cultura, pois esse feriado também é marcado por celebrações sobre sacrifício, redenção e ressurreição.
Vamos “cortar” este signo em dois e depois juntá-lo de novo.
Tesouras, sem redescobrir a roda, simbolizam corte. Podemos assumir algo literal (afinal de contas, as tesouras são usadas para matar as pessoas da superfície, “cortando” suas ligações com o mundo físico) ou algo menos óbvio: o corte do “direito adquirido à herança” de permanecer na superfície. Tesouras cortam aquilo que não é essencial. O excesso de cabelo na cabeça, de unhas nos dedos, de tecido numa roupa etc. Na visão das Sombras, o povo da superfície não é essencial para o “novo mundo” que querem construir.
O dourado, como mencionado no tópico das cores, está diretamente associado à Califórnia, onde se passam os eventos de “Nós”. A tesoura dourada, portanto, pode ser interpretada como uma revolta do passado contra o presente: uma mudança radical – um “corte” – na ordem corrente. O fim de uma era e o começo de uma nova.
Não é exatamente um símbolo, mas Jordan Peele usa as camisetas estampadas para revelar o que vai acontecer a seguir em seu filme: pouco depois de vestir uma camiseta de “Thriller”, Adelaide é atacada por uma criatura sobrenatural vinda das profundezas (uma criatura sobrenatural que dança); na praia, Jason usa uma camiseta do filme “Tubarão” e momentos depois é assombrado pela figura de um predador ensanguentado; naquela noite, a estampa de smoking prenuncia a chegada de “convidados”.
O final de “Nós” funciona pelo filme que existe antes dele, porque é o plot twist mais manjado nesse tipo de história (“Reflexos”, um filme bem ruinzinho protagonizado por Lena Headey, tem praticamente a mesma reviravolta). Mas ele ecoa na história contada pelos outros símbolos que “desvendamos” por aqui.
O público sempre vai se apegar ao protagonista de uma história. A trama gira em torno dele, suas decisões influenciam outros personagens, seu conjunto de valores éticos e morais é adotado como o “certo”. Passamos o tempo inteiro torcendo para que Adelaide se salve de Red, para descobrirmos no final que Red era, na verdade, Adelaide e a “heroína” da história era, de fato, a “vilã” o tempo inteiro. Isso nos faz questionar as próprias noções de “certo” e “errado” em “Nós”. Assumimos que as Sombras são os “vilões” porque ameaçam a vida da protagonista, mas não somos capazes de explicar o porquê. Peele diz “torçam por esta mulher” e, na cena final, diz “o pavor que vocês sentiram acometeu a mesma mulher que vocês passaram as últimas duas horas odiando”. Se não somos capazes de identificar “mocinhos” e “bandidos” num filme, como conseguiremos no dia a dia?
A lição é sempre ler nas entrelinhas. Da vida e de filmes de diretores tão detalhistas como Jordan Peele.