Plano Aberto

Todas As Mulheres do Mundo

Difícil saber se, enquanto Jorge Furtado e Janaína Fischer escreviam os roteiros para “Todas as Mulheres do Mundo”, previram o alcance que a minissérie teria. Feita originalmente para o Globoplay, plataforma digital da Rede Globo, ela foi veiculada no streaming em 2020 e exibida na televisão pela emissora em 2021, em capítulos semanais: sempre às terças-feiras, após o “Big Brother Brasil”. Mais especificamente, após as eliminações do “BBB”, ou seja, dos episódios mais assistidos do reality. Assim sendo, as desventuras amorosas de Paulo passaram a ser acompanhadas total ou parcialmente por um número de espectadores que permaneciam sintonizados na Globo após o fim do “Big Brother”. Talvez tenha sido o primeiro contato que muitos tiveram com o trabalho de Domingos Oliveira, ainda que de maneira indireta.

Originalmente um filme de 1966, estrelando Paulo José e Leila Diniz, “Todas as Mulheres do Mundo” foi o primeiro longa do cineasta Domingos Oliveira, falecido em 2019. O próprio diretor já havia reimaginado e refilmado a obra para a televisão, em 1990, em uma versão condensada: enredo e passagens do filme foram compactados em um episódio de 60 minutos do programa “Caso Especial”, com Pedro Cardoso e Fernanda Torres. Na versão de 2020, as ideias do filme de 1966 são expandidas para um formato que, apesar da maior minutagem, preza pela leveza: doze episódios, que em geral variam entre vinte e quarenta minutos de duração cada um.

A nova adaptação parte do que as cartelas de abertura anunciam como “uma ideia de Domingos Oliveira e [a atriz e cineasta] Maria Ribeiro” – que possui, tanto no cinema quanto no teatro, um histórico de trabalhos com o cineasta, além de ocupar um papel central no episódio 7. O que a equipe criativa (além do roteiro de Furtado e Fischer, indispensável citar nominalmente Ricardo Spencer e Renata Porto, responsáveis pela direção geral, e Patricia Pedrosa, pela direção artística) por trás da minissérie faz é não só “alongar”, por assim dizer, a premissa original, como também atualizá-la e inserir uma série de novos personagens, temáticas e situações, que variam de pautas sociais a homenagens a Domingos. Ainda que a abordagem acerca de algumas dessas supracitadas pautas seja desajeitada (a discussão sobre identidade de gênero no episódio 2 é desconfortável e parece ter sido inserida ali de maneira não suficientemente familiarizada com a questão), num geral vê-se que tais tentativas são motivadas pelas melhores intenções (como na retratação da prostituição no episódio 9, que se debruça sobre um assunto sério de maneira segura e sob um recorte bem definido, sem aventurar-se em discorrer de maneira mais completa sobre o tópico).

A mera ideia de “atualizar” “Todas as Mulheres do Mundo” pode a princípio soar estranha. Afinal, trata-se de um clássico do cinema brasileiro, que mesmo sendo uma comédia romântica durante o auge do Cinema Novo, abocanhou prêmios no Festival de Brasília, mais tradicional evento do país dedicado à cinematografia nacional. Um pensamento mais fechado julgaria que atualizar “Todas as Mulheres do Mundo” seria como, mal comparando, tentar atualizar “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Talvez até seja, mas a equipe entra de cabeça nessa tentativa, equilibrando os objetivos de prestar um tributo a toda a filmografia de Domingos e de construir uma minissérie palatável mesmo para um público que o desconhece.

Ainda que em seus filmes mais recentes, rodados e lançados já nos anos 2000 e 2010, Domingos Oliveira sempre transpôs em sua arte um certo arquétipo de intelectual, de artista irremediavelmente pertencente ao século XX, da boemia oriunda da zona sul do Rio de Janeiro, conhecida nacionalmente por sua presença sólida em cinema, televisão, literatura e música, e personificada também por nomes ilustres como Vinícius de Moraes.

Ao trazer Paulo, protagonista de “Todas as Mulheres do Mundo”, para o século XXI, a minissérie de 2020 o remodela substancialmente. Agora vivido por Emílio Dantas, ele é um arquiteto que tem por habitat o bairro de Copacabana, e transita por diversas paixões enquanto nutre um duradouro, porém distante amor por Maria Alice, que considera a mulher ideal, porém admira à distância, uma vez que esta se encontra exilada na Europa. Esse envolvimento com várias mulheres é lido, tanto pelo personagem quanto pela produção, como uma espécie de “amor serial”. Pouco ou nada se fala em poligamia, e apesar de se envolver com múltiplas mulheres (em dadas ocasiões, ao mesmo tempo), o personagem principal está sempre travando uma luta corporal com o ciúme.

A poligamia, ainda que sem receber tal designação, não é assunto novo no cinema, na literatura ou na televisão, seja nacional (como na crônica de costumes sobrenatural “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, que Jorge Amado lança em 1966) ou internacionalmente (afinal, a cineasta Ida Lupino já havia feito “O Bígamo” em 1953). De maneira mais ou menos conservadora, tratada com seriedade ou comicidade, com pontos de vistas favoráveis ou contrários à mesma, poligamia já era assunto popular. O próprio filme original de Domingos Oliveira não era muito diferente, apesar de ter como base um outro discurso: nele, o personagem de Paulo José precisa abrir mão de todas as mulheres do mundo (vide o título) para provar seu amor pela Maria Alice de Leila Diniz, firmando-se, por conseguinte, em um ato de deixar a poligamia pela monogamia. Na versão da Globoplay, os encontros e desencontros de Paulo com tantas parceiras o fazem transitar por situações variadas e coletar aprendizados. Maria Alice torna-se uma presença constante ao longo do conjunto, mesmo quando sua presença está reduzida a uma ou duas sequências em que conversa com Paulo por videochamada. Física ou virtualmente, tem idas e vindas com o protagonista.

A isso são incorporados outros elementos do universo dominguiano. Boa parte da segunda fase da obra cinematográfica do cineasta (que vai dos anos 1990 a seu falecimento em 2019) possui um quê de autoficção, e se ele, que também era ator, recorrentemente se inseria como alter-ego em filmes como “Carreiras” (2005) e “Amores” (1998), é o personagem Cabral, de “Separações” (2002), que é adaptado para a produção da Globoplay. Aqui, ele é vivido por Matheus Nachtergaele, que emula com admirável similaridade os trejeitos físicos e vocais de Domingos Oliveira – de modo similar ao que já havia feito ao interpretar outro diretor, José Mojica Marins, para uma minissérie do canal Space. O protagonista de “Separações”, que aqui vira coadjuvante, tem no novo “Todas as Mulheres do Mundo” até um arco próprio, que inclui a superação do fim do grande amor de sua vida, Glorinha – a mesma de “Separações”, interpretada por Priscilla Rozenbaum (companheira de Domingos), que aqui reprisa o papel em uma participação especial particularmente afetiva aos simpatizantes da filmografia do cineasta.

Talvez um dos pontos positivos mais evidentes de “Todas as Mulheres do Mundo” esteja mesmo nas narrativas paralelas. Não apenas no arco de Cabral, que passa também por uma tentativa de se tornar influenciador digital e uma experiência de quase morte, mas principalmente no de Laura (Martha Nowill). Melhor amiga de Paulo, ela inicialmente atravessa uma busca por satisfação romântica/sexual que não é de todo diferente da que acomete o protagonista (e os dois inevitavelmente acabam se relacionando nesse sentido, em dado momento), mas encontra a tranquilidade verdadeira na maternidade – e em uma maternidade solo. Laura e Cabral são irresistíveis, compondo com êxito o par de coadjuvantes carismáticos que serve muito bem a séries e minisséries. Se por vezes funcionam como alívio cômico, possuem desenvolvimentos particulares e, mesmo nos momentos em que servem como suporte para a história de Paulo, oferecem perspectivas diferenciadas que justificam suas inserções.

Em meio às narrativas secundárias, ou até durante a trajetória amorosa de Paulo, destacam-se participações de atores mais ou menos conhecidos. Além de Nachtergaele e Maria Ribeiro, Fábio Assunção, Ícaro Silva e Lília Cabral dão as caras ao longo da minissérie. As “namoradas” (com aspas, dado que algumas são não mais do que casos passageiros) de Paulo possuem maior ou menos elaboração dramática a depender do episódio. Se a produção opta por elencar, para elas, atrizes menos conhecidas em geral, a escolha funciona no intuito de tornar suas histórias com Paulo mais mundanas e relacionáveis (e Emílio Dantas, apesar de já participar de filmes e telenovelas, também possui esse quê mundano que o diferencia do que hoje é, por exemplo, um ator como Bruno Gagliasso, apenas para citar alguém na mesma faixa etária). Quando atores e atrizes de perfil mais reconhecível aparecem, se destacam, e “Todas as Mulheres do Mundo” sabe utilizar isso a seu favor, como faz ao retratar o magnestismo que a personagem de Fernanda Torres exerce sobre Paulo, ou a imponência do chefe vivido por Fábio Assunção.

É sobre o próprio Paulo, no entanto, que as questões principais de “Todas as Mulheres do Mundo” recaem e pesam, para um lado ou para o outro. Radicalmente diferente do original de Paulo José – o que não é nenhum problema, dado que trata-se de uma adaptação – a leitura modernizada do personagem, sob a pele de Emílio Dantas, vem sendo constante objeto de discussão nas redes sociais. Referências ao personagem são recorrentemente acompanhadas pelo rótulo “esquerdomacho”, designação para os homens que cobrem-se com um verniz de sensibilidade artística e preocupação com causas progressistas na intenção de empreender conquistas sexuais. E Paulo, de fato, possui muito em comum com esse tipo de imagem: recita poesia, fala sobre literatura, mora num bairro de classe média/média alta e suas relações com mulheres ao longo da minissérie atravessam uma certa quantidade de dissabores. Possui até mesmo o já estereotipado visual que une óculos arredondados de aros grossos, cabelos ondulados e barba. De certa forma, essa reformulação do personagem condiz com os novos tempos: hoje, se veem muito mais Paulos como o de Emílio Dantas do que como os de Paulo José, que no filme de 1966 opera muito mais como um cafajeste com coração de ouro, sem as característica de personalidade do “esquerdomacho”.

A depender do episódio, ele suscita simpatia, compreensão, vergonha alheia ou desprezo. A julgar pela maneira como cada situação é construída, essas emoções nem sempre parecem causadas de maneira proposital. Mas existem, e acometem o espectador. Talvez o constrangimento seja o sentimento que mais se faça presente no que é relativo aos assuntos amorosos do personagem. Por vezes, isso é utilizado conscientemente, como um dos jeitos que a produção utiliza para fazer humor; é o caso de uma sequência do já mencionado episódio 7, em que, tendo sido convidado para passar um feriado com seu chefe e a esposa do mesmo, Paulo e sua namorada da vez se veem coagidos pelos “patrões” a assistir a uma fita erótica. Em outros momentos, no entanto, é puro desconforto, como no episódio 8, em que o protagonista causa alvoroço e briga violentamente com sua parceira da ocasião, Gilda, por flagrá-la posando nua para uma pintura em frente a um público numeroso.

Entre o humor e o desconforto, o amor e a raiva, Paulo é um protagonista que oscila, inconstante, o que o torna mais tridimensional – ponto para Jorge Furtado, Janaína Fischer e a direção geral da minissérie. As únicas constantes nele são o seu jeito de “amoroso serial” e sua obsessão com Maria Alice.

Nelson Rodrigues uma vez disse: “Sou um obsessivo e houve alguém que me chamou de ‘flor de obsessão’. Exato, exato, e graças a Deus. O que dá ao homem um mínimo de unidade interior é a soma de suas obsessões.”. Tal é a maneira como Paulo, a flor de obsessão de “Todas as Mulheres do Mundo”, idealiza Maria Alice. Emílio Dantas encarou a tarefa difícil de tornar seu um papel anteriormente vivido por Paulo José, e a atriz Sophie Charlotte, ao ingressar na produção, precisou enfrentar um desafio tão grande quanto – ou maior ainda – ao viver a personagem definitiva da saudosa Leila Diniz. A relação de sua Maria Alice com Paulo, tanto pela maior minutagem quanto por outros fatores, como a atualização temática, as escolhas narrativas de roteiro/direção e a própria interpretação da atriz, acaba sendo aprofundada e cheia de tons de cinza. Se o protagonista a enxerga de maneira idealizada enquanto ela está distante, quando sua paixão retorna ao Brasil ele descobre que a relação entre os dois está tão suscetível quanto qualquer outra a passar por crises e separações.

Em imagem, a opção da direção de Ricardo Spencer, Renata Porto e Patricia Pedrosa é a de uma estética que está em alta na televisão desde, pelo menos, meados da década de 2010 (podendo ser visto, por exemplo, em filmes como “Entre Abelhas”, de 2015), que é a de uma nova “estética publicitária”.

Aqui cabe um parêntese, porque é importante diferenciar duas coisas distintas que se enquadram sob um mesmo nome. Se nos anos 2000 falava-se sobre a influência de uma “estética publicitária” no cinema brasileiro em filmes como “Cidade de Deus” (2002) e “Tropa de Elite” (2007), o mesmo pode ser dito sobre “Todas as Mulheres do Mundo”. Mas se nos filmes mencionados essa estética se influía em cores hipersaturadas e estilizadas, montagem frenética, perceptível, e ação constante, aqui a estética é outra. O mundo mudou, a publicidade mudou, o cinema e o audiovisual mudaram. Na minissérie da Globoplay, predominam cores dessaturadas (que tendem para o quente, sempre remetendo ao amor, ao afeto), planos simples e seguros, com incursões mais elaboradas reservadas para determinados momentos (como a apresentação da personagem Gilda, no episódio 8, para citar um) na intenção de dar-lhes um impacto singular. Se a Rede Globo vem apostando em arroubos estéticos mais arrojados em algumas de suas produções (houve quem comparasse a novela “Amor de Mãe” aos filmes da Fox Searchlight), em “Todas as Mulheres do Mundo” o que predomina é essa escolha pelo seguro, ainda que isso não signifique que, imageticamente, a minissérie é destituída de uma personalidade. Possui personalidade, sim, e muito bem demarcada, que se faz notar visual e sonoramente.

A abertura está entre os aspectos mais marcantes da produção, ainda que seja, contraditoriamente, mutável a cada episódio. A saber: a vinheta é sempre a mesma, e a canção-tema também: a histórica “Carinhoso”, de Pixinguinha e João de Barro. No entanto, intérpretes diferentes dão vida à música em cada episódio, estabelecendo o tom do que virá a seguir. A sua maneira, os capítulos prestam homenagem a grandes cantoras brasileiras, que possuem algumas canções de seu repertórios espalhadas ao longo da minutagem de cada episódio. Se os capítulos em referência à “namorada” que Paulo cultiva durante cada um deles, a escolha das cantoras por vezes se relaciona a essas mulheres que passam pela vida do protagonista: no primeiro capítulo, em que conhece Maria Alice, a trilha é Marisa Monte, com canções em que predominam melodias e vocais sensíveis. No episódio 3, quando o protagonista vive um romance no subúrbio carioca, o faz sob uma seleção de sambas de Alcione. Quando namora Laura no capítulo seguinte, é Maria Bethânia; quando se relaciona com Gilda, no oitavo episódio, é Elza Soares; quando visita sua mãe, no nono, é Elis Regina. Assim, o título “Todas as Mulheres do Mundo” ocupa múltiplas funções: se refere a todas as mulheres que orbitam a vida de Paulo, a sua indecisão entre optar pela poligamia ou por um amor exclusivo com Maria Alice e, por fim, a todas essas mulheres que são homenageadas musicalmente pela minissérie.

Entre tropeços e momentos aconchegantes, “Todas as Mulheres do Mundo” funciona como um sincero epílogo aos trabalhos de Domingos Oliveira, podendo ser uma porta de entrada para sua filmografia ou uma obra fechada, autossuficiente aos não-familiarizados com o universo dominguiano. Não é perfeito, como o cinema de Domingos também não o foi. O que ambos definitivamente possuem é coração. Se o filme de 1966 marcou o cinema nacional, a minissérie de 2020 marcou as noites de terça-feira, no pós-“Big Brother” – e, enquanto produção, ocupou seu lugar como uma adição ao cada vez mais encorpado catálogo de originais da Globoplay.

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