Guia de publicações da série especial sobre a obra de J.R.R. Tolkien:
- Parte 1: a respeito da narrativa indireta e a visão tolkieniana do Gênesis (você está aqui)
- Parte 2: os planos originais de Eru Ilúvatar e seus desvios (clique no link)
- Parte 3: a influência de seu casamento na Balada de Beren e Lúthien e o simbolismo das Silmarils (clique no link)
- Parte 4: Túrin e a maldição de Morgoth (clique no link)
- Parte 5: sobre Tuor, a influência dos Valar e a queda de Gondolin (clique no link)
- Parte 6: as restrições a respeito da miscigenação na obra de Tolkien (clique no link)
- Parte 7: a condescendência de Tolkien com o imperialismo (clique no link)
Em 1937, O Hobbit teve sua primeira edição publicada no Reino Unido e revolucionou o mercado literário. Pai da chamada “alta fantasia”, aquela que se desenvolve em um universo com mitologia e regras internas próprias, John Ronald Reuel (J.R.R.) Tolkien possivelmente inspirou a esmagadora maioria dos autores deste subgênero que o sucederam. 80 anos após O Hobbit, ainda é pertinente revisitar sua obra e analisá-la sob aspectos estruturais, estilísticos, históricos, morais e éticos. A relevância de Tolkien é inegável.
Esta série especial tem como objetivo dimensionar o amplo espectro da literatura tolkieniana referente ao universo popularizado por O Hobbit e, porteriormente, pela trilogia O Senhor dos Anéis. Após a morte de John, seu filho Christopher se tornou o executor literário das obras e foi o responsável por organizar e editar outros três livros que fazem parte deste estudo: O Silmarillion, Contos Inacabados e Os Filhos de Húrin. Os sete volumes foram lidos na ordem cronológica proposta pelo portal Tolkien Brasil (nível 02), com pequenas alterações que elencarei no item “Minha ordem de leitura”.
Obras eliminadas da bibliografia e outras fontes de pesquisa
Católico fervoroso, Tolkien inseriu muito da mitologia e dos valores cristãos em sua obra. Compreendendo que o autor não buscava catequisar seus leitores, o livro de Mark Eddy O Senhor dos Anéis e a Bíblia não foi consultado para este trabalho. Paralelos entre a narrativa e o Cristianismo – e outras mitologias, como a nórdica e a grega – serão feitos, quando pertinentes, por outras fontes.
Na poesia, de forma mais contundente do que na prosa, traduções comprometem o significado e as intenções originais do autor. Desta forma, e pela falta de tempo hábil para analisar adequadamente os textos em Inglês, com relação a obras escritas pelo próprio Tolkien, As Aventuras de Tom Bombadil e A Última Canção de Bilbo também foram omitidas deste trabalho.
Além do já mencionado Tolkien Brasil, também foram de grande valia o Fórum Valinor e a One Wiki to Rule Them All, principalmente para coletar de forma organizada dados que estão esparsos nos livros. Quaisquer interpretações do texto presentes nestes portais que porventura sejam utilizadas aqui como ponto de partida ou endosso para alguma análise, serão devidamente citadas.
Os livros da série The History of Middle-earth não foram consultados diretamente, mas foram lidos artigos que mencionam parte de seu conteúdo. Os livros Árvore e Folha (Tolkien) e A República (Platão) foram consultados parcialmente.
Sobre as interpretações propostas neste trabalho
Outros arranjos poderiam ser criados de acordo com os gostos ou as visões daqueles que gostam de alegorias ou referências tópicas. Mas eu cordialmente desgosto de alegorias em todas as suas manifestações, e sempre foi assim desde que me tornei adulto e perspicaz o suficiente para detectar sua presença. Gosto muito mais de histórias, verdadeiras ou inventadas, com sua aplicabilidade variada ao pensamento e à experiência dos leitores. Acho que muitos confundem “aplicabilidade” com “alegoria”; mas a primeira reside na liberdade do leitor, e a segunda na dominação proposital do autor.
J. R. R. Tolkien. O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel. Prefácio, XIII
É louvável a liberdade que Tolkien dá a seus leitores. Ao deixar claro que sua obra não é o que chama de “alegoria”, permite que ela seja interpretada livremente por qualquer um que assim deseje. Ao tirar de si a responsabilidade de “explicar” seus escritos, Tolkien delega aos leitores a obrigação de buscar correspondências entre seus livros e História, Filosofia, Literatura etc. Professor que era, motivar seus “alunos” a estudar por conta própria deveria ser o que ele considerava um trabalho bem executado de sua parte.
Inegavelmente, esta é uma série especial que despertará discordância entre alguns leitores. São 80 anos acumulados de leituras, análises e trabalhos acadêmicos sobre a obra tolkieniana. Não seria sensato alimentar a pretensão de resolver todas as questões quase centenárias a respeito destes livros.
Mas tenhamos em mente o desejo do professor Tolkien e, caso alguma conclusão aqui exposta vá de encontro às crenças pessoais de cada um, que ela sirva de motivação para novos estudos, debates e proposições. Se assim o for, este trabalho também terá sido bem executado.
Sem mais delongas, comecemos.
Metanarrativa: “Traduzido do Livro Vermelho do Marco Ocidental por John Reuel Tolkien”
Tolkien criou uma história em torno das línguas artificiais que inventou. Acrescentando a isso sua condição de professor universitário e sem esquecer do fato de que O Hobbit foi escrito para seus filhos John, Michael e Christopher, é possível imaginar que ele tentou resolver três questões de uma só vez com esta escolha de “traduzir” a narrativa dos hobbits que ele “encontrou”:
- exemplificar na prática como era a dinâmica das suas atividades como filólogo;
- dar à história um ar documental, visto que seus acontecimentos “não são” ficcionais, mas sim traduções de fatos há muito ocorridos;
- resguardar-se por trás de uma narrativa indireta. Umberto Eco disse quanto à sua escolha de escrever O Nome da Rosa numa metanarrativa similar à de Tolkien:
Na verdade, não decidi apenas falar sobre a idade média, mas sim na idade média, e pela boca de um cronista da época. Era meu exórdio como narrador e até então eu havia olhado para os narradores do outro lado da barricada. Envergonhava-me contar. Sentia-me como um crítico teatral que, de repente, fica exposto às luzes da ribalta e se vê olhado por aqueles de quem, até então, havia sido cúmplice, na plateia.
Pode-se dizer “Era uma bela manhã de fins de novembro” sem sentir-se um Snoopy? E se eu deixasse Snoopy dizer isso? Ou seja, se “era uma bela manhã…” fosse dito por alguém autorizado a dizê-lo, porque no tempo dele é assim que se dizia? Uma máscara, era disso que eu precisava.
Umberto Eco. Apostilas a O nome da rosa: A máscara, p. 563
Existem ligeiras diferenças entre os métodos de Eco e Tolkien. O italiano realmente “traduziu” o diário do noviço Adso de Melk, relatando ipsis litteris os acontecimentos de uma semana na abadia ao norte da Itália de 1327 tais como Adso os “escreveu”. Já o Britânico “analisou” os relatos dos hobbits e as próprias traduções de Bilbo das lendas élficas para contextualizar e enriquecer as histórias principais de O Hobbit e O Senhor dos Anéis. Nos apêndices dispostos ao final de O Retorno do Rei, Tolkien dá detalhes de como desenvolveu seu “trabalho”. Segundo a corrente da Filologia defendida por Tolkien, é impossível entender plenamente uma linguagem sem considerar a forma como o autor se relaciona com ela, as tradições e a História de sua época. Esse conceito de que a língua é resultado direto do povo que a fala é intensivamente trabalhado no filme A Chegada, de Denis Villeneuve.
Portanto, Tolkien mais do que apenas “traduzir”, também assimilou o mundo onde as histórias se inserem. Isso lhe dá a autoridade de narrador onisciente, autorizado a recorrer regularmente ao discurso indireto livre, fundindo a narrativa dos fatos com sua percepção particular.
Mas como ele começou?
No princípio era a Música, e a Música estava com Eru
A partir do tema que lhes indiquei, desejo agora que criem juntos, em harmonia, uma Música Magnífica. E, como eu os inspirei com a Chama Imperecível, vocês vão demonstrar seus poderes ornamentando esse tema, cada um com seus próprios pensamentos e recursos, se assim o desejar. Eu porém me sentarei para escutar; e me alegrarei, pois, através de vocês, uma grande beleza terá sido despertada em forma de melodia.
O Silmarilion. Ainulindalë, p. 3-4
Existe uma história de origem do mundo para cada cultura e dela se aprende mais do povo que a conta do que da origem do mundo em si. Tolkien, como já dito anteriormente, era católico. Mas, apesar da maior proximidade com a versão judaica dos fatos (o Judaísmo é “irmão” do Cristianismo), a criação de Arda não é uma transcrição “pura” do Livro de João. Sete são os Valar, tal qual os arcanjos. Mas também há sete Valier, as “rainhas dos Valar”, algo mais próximo da mitologia grega. Os maiar, assessores de menor poder dos Valar (incluem-se neste clã figuras de extrema relevância na saga como Gandalf, Saruman e Sauron), também não são exatamente anjos, pois não cuidam individualmente de cada habitante de Arda – Gandalf regularmente diz aos hobbits que faz exatamente o oposto de cuidar individualmente de cada um, preocupando-se com as chamadas “questões maiores”.
Esta ambiguidade fica clara na forma como alguns dos Valar reúnem ao mesmo tempo traços de arcanjos e de deuses gregos. Manwë pode tanto ser Miguel quanto Zeus (neste paralelo, Eru Ilúvatar seria simultaneamente Deus e Caos), Mandos guarda semelhanças com Zadiel e Hades, enquanto Melkor, posteriormente conhecido como Morgoth, é ao mesmo tempo Lúcifer e Ares.
Tais comparações vão além dos exemplos acima descritos e serão retomados quando a criação dos anões e algumas canções élficas forem analisadas. O próximo post tratará especificamente da Primavera de Arda e da forma como Melkor começou a subverter os desígnios de Eru Ilúvatar. Curta a página do Plano Aberto no Facebook para não perder nada!