Guia de publicações da série especial sobre a obra de J.R.R. Tolkien:
- Parte 1: a respeito da narrativa indireta e a visão tolkieniana do Gênesis (clique no link)
- Parte 2: os planos originais de Eru Ilúvatar e seus desvios (você está aqui)
- Parte 3: a influência de seu casamento na Balada de Beren e Lúthien e o simbolismo das Silmarils (clique no link)
- Parte 4: Túrin e a maldição de Morgoth (clique no link)
- Parte 5: sobre Tuor, a influência dos Valar e a queda de Gondolin (clique no link)
- Parte 6: as restrições a respeito da miscigenação na obra de Tolkien (clique no link)
- Parte 7: a condescendência de Tolkien com o imperialismo (clique no link)
Após estabelecer paralelos entre figuras mitológicas e os Valar na obra de Tolkien, é hora de analisar como a dinâmica entre estas entidades tornou impossível o cumprimento dos planos originais feitos para Arda.
Arda 1.0 e os planos de Eru
Após criar o mundo por música, Eru permitiu que os espíritos imortais ainur entrassem nele para finalizar a obra começada pela Ainulindalë, se assim desejassem. Estes são os Valar conhecidos pelos povos de Arda, alguns já mencionados no post anterior, sendo no total quatorze. Assim como no Cristianismo, o objetivo original dele era preparar uma terra perfeita para a chegada de seus filhos, elfos e homens. Contudo, Melkor pensava diferente.
Este é o paradoxo clássico do Diabo do Cristianismo: a criação mais poderosa de Deus (Melkor significa precisamente “O Poderoso”) quer moldar a Terra à sua imagem e semelhança, mas é incapaz de gerar vida (é estabelecido na primeira página do Silmarillion que apenas o portador da Chama Imperecível pode fazê-lo). Desta forma, tudo o que resta a Melkor é subverter a criação de Eru e destruir os feitos dos demais Valar.
Este foi o primeiro golpe no projeto da Arda, antes ainda da chegada dos Filhos de Ilúvatar.
Mas os quendi serão as mais belas criaturas da Terra; e irão ter, conceber e produzir maior beleza do que todos os meus Filhos; e terão a maior felicidade neste mundo. Já aos atani concederei um novo dom.
O Silmarillion. Do início dos tempos, p. 35-36
Os quendi (elfos) são virtualmente imortais, embora possam ser mortos. Dominam as artes da cura e amam Arda mais do que tudo. São uma manifestação do lado eco-friendly de Tolkien, também presente em Varda, a Valië mais amada pelos elfos, e Yavanna, criadora de todos os animais e árvores, com destaque especial para os ents, os “pastores das árvores”. Elfos viverão enquanto Arda viver.
Já aos atani (homens), Eru concedeu a curiosidade, o desejo de ir além das regras estabelecidas por ele aos ainur e aos quendi. Também é exclusivo dos homens o dom da morte, algo incompreendido por deuses e elfos. Numa sutil e elegante reverência, Tolkien não especulou sobre o pós-morte na estrutura divina criada por ele, uma vez que sua própria religião não descreve a morada reservada por Deus para aqueles que desencarnam.
As subversões de Melkor e os anões
Em Lúcifer – O Primeiro Anjo, livro do brasileiro Marcelo Hipólito baseado em, dentre outras fontes, descobertas arqueológicas e mitos judaico-cristãos, islãs e budistas, a chegada do Anjo Caído ao Abismo é muito similar à criação de Utumno por Melkor. Este reino do submundo serviu primeiramente para destruir a Primavera de Arda, mas também para corromper os Primogênitos – os orcs são parentes diretos dos elfos.
É, porém, considerado verdadeiro pelos sábios de Eressëa que todos aqueles quendi que caíram nas mãos de Melkor antes da destruição de Utumno foram lá aprisionados, e, por lentas artes de crueldade, corrompidos e escravizados; e assim Melkor gerou a horrenda raça dos orcs, por inveja dos elfos e em imitação a eles, de quem eles mais tarde se tornaram os piores inimigos.
O Silmarillion. Da chegada dos elfos e do cativeiro de Melkor, p. 49
Talvez este seja considerada “o ato mais abjeto de Melkor” (p. 49) por causar a primeira relação odiosa entre criaturas de Eru Ilúvatar, já que os orcs não foram criados, mas corrompidos por Melkor.
Colocando em perspectiva, é difícil entender o motivo de tanto ódio em uma dinâmica de onde se poderia esperar compaixão e lamento. Quando lido em ordem cronológica, o legendarium de Tolkien cria uma expectativa acima da média sobre capítulos como “Os Uruk-hai”, de As Duas Torres, exatamente por ser a primeira humanização dos orcs. O background trágico apresentado em O Silmarillion parece ter ficado de lado no decorrer da saga, algo que será melhor tratado no item “O maniqueísmo dos vilões”.
Melkor não foi o único a subverter os planos de Eru Ilúvatar, embora por um motivo diametralmente oposto. Aulë é um Valar com talento para a forja praticamente igual ao de Hefesto, deus grego dos ferreiros, artesãos e escultores.
Melkor sentia inveja de Aulë, pois era Aulë o que mais se assemelhava a ele em ideias e poderes; e houve um longo conflito entre os dois, no qual Melkor sempre desfigurava ou desfazia as obras de Aulë; e Aulë se exauria a reparar os tumultos e as desordens de Melkor. Os dois também desejavam criar coisas que fossem suas, novas e ainda não imaginadas pelos outros, e gostavam de ter sua habilidade elogiada.
O Silmarillion. Valaquenta, p. 18
Esse desejo, aliado à impaciência, motivou Aulë a criar os anões, criaturas explicitamente incorretas (“Que Eru abençoe meu trabalho e o corrija” / “mas de nenhum outro modo corrigirei tua obra” – p. 40), feitas sem o requinte de Eru. Esses traços serão a força-motriz de O Hobbit, quando os anões liderados por Thorin Escudo-de-Carvalho, com a ajuda de Bilbo Bolseiro, partem numa jornada para retomar Erebor, controlada pelo dragão Smaug.
Não deixe de curtir a página do Plano Aberto no Facebook! Na próxima publicação, a análise será sobre Valinor, o reino sagrado dos Valar, a criação das Silmarils e a principal história de Tolkien, segundo ele mesmo: Beren e Lúthien.