‘Toy Story 4’ e o papel de gênero na infância

‘Toy Story 4’ e o papel de gênero na infância

Como uma menina brincando com Woody muda tudo

Redação - 7 de janeiro de 2020
Por Susana Castro

Assisti ao primeiro “Toy Story” (1995) e ao segundo (1999) em cópia DVD com meu filho quando ele tinha em torno de 2 anos – cerca de 18 anos atrás. Morávamos em Munique e esses DVDs infantis eram vendidos a preços populares nas drogarias dos bairros. Os filmes infantis atuais, de maneira geral, são uma diversão para crianças e adultos, na medida em que seus roteiros guardam certa complexidade que atiça a imaginação de pais e mães abnegados como nós. Há cerca de um mês, assisti por acaso a “Toy Story 4” em uma viagem de avião e adorei.

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A ideia central da franquia Toy Story é muito boa: brinquedos dotados de inteligência e fala que agem por conta própria quando seu dono ou dona não está por perto. Todo adulto um dia foi criança e um dia acreditou ao brincar com seus brinquedos que estava de fato brincando com seus amigos de verdade. É extremamente comum a criança acreditar que seu boneco ou boneca está vivo e se comunica com ela. Na imaginação infantil não há barreira que separe as cópias inanimadas dos seres humanos e os seres humanos reais, todos estão “vivos” – com a enorme vantagem de que quem define e controla a brincadeira é a própria criança. Ela não precisa negociar com nenhuma outra criança a narrativa do jogo e da brincadeira.

Meninos e meninas

Ao assistir a Toy Story 4, um fato imediatamente me chamou a atenção. Diferente dos outros filmes que havia assistido com meu filho, nesse a dona dos brinquedos era uma menina: Bonnie. Foram necessários 22 anos para que o caubói Woody e os outros brinquedos fossem parar nas mãos de uma menina. Andy, antigo dono dos brinquedos, cresceu e está na universidade. Seus brinquedos foram parar nas mãos de uma menina. Em um mundo no qual brinquedos de meninas e brinquedos de meninos são diferenciados, os roteiristas bem que poderiam ter colocado outro menino para prosseguir com a franquia. Mas, não, felizmente muita coisa mudou de lá para cá, e hoje faz parte da educação progressista dar igual liberdade às meninas para que possam construir universos de brincadeiras e aventuras pela imaginação, para além das velhas e exclusivas brincadeiras de boneca e casinha.

Toy Story 4

Na minha época isso era impensável. Lembro-me da ida à loja da Sears, onde meu pai compraria uma bicicleta para mim, e de ele não me deixar escolher a bicicleta com marcha que eu queria, me obrigando a ficar a bicicleta “de menina”. A imagem que me vem à memória da minha bicicleta do deseja se parecia com as que os personagens de “Stranger Things” usam, só que com quadro de marcha acoplado ao quadro da bicicleta.

Em seu livro “Para Educar Crianças Feministas“, a escritora Chimamanda Ngozi Adiche narra a visita a um shopping americano com uma menina nigeriana e sua mãe. A menina ficou fascinada com um helicóptero de controle remoto e pediu um. A mãe negou-lhe: “Você tem suas bonecas.” E a menina respondeu: “Mamãe, é só com bonecas que vou brincar?”

Não há nada mais cerceador da inteligência e liberdade humanas do que os estereótipos de gênero reproduzidos nos brinquedos infantis. Meninas que só brincam de casinhas, com suas bonecas, estão sendo educadas a pensar que a única coisa a que podem aspirar nas suas vidas adultas é o casamento e a maternidade.

“Toy Story” e a amizade

Bonnie, a menina de “Toy Story 4”, ama seus brinquedos e a vida que cria com eles no seu quarto, por isso se sente muito sozinha quando é obrigada a ir para o Jardim de Infância. Os brinquedos sabem que a infelicidade da menina por ter que ir a escola vai lhes afastar das brincadeiras em casa. O que fazer? Para Bonnie a escola e as outras crianças representam um ambiente hostil, no qual se sente insegura e triste. Como fazer um amigo nessa situação?

A sacada do roteiro é genial: “fazendo”, literalmente, um amigo a partir dos restos encontrados no lixo da sala de aula. Com uma ajudinha do Woody ela cria esse amigo e assim não se sente mais sozinha e abandonada. Há a partir daí uma série de eventos que vão se desenrolar ao longo do filme em torno desse novo personagem e sua crise de identidade. O filme possui cenas hilárias, com destaque para o tom metanarrativo das cenas da representação das soluções propostas/narradas pelos bonecos de pelúcia do circo, mas que por serem muito mirabolantes são descartadas.

Toy Story 4

O filme é bom por vários motivos, mas se destaca o fato de estar dando voz a essa mudança real de cultura educacional de gênero, principalmente em uma época, na qual ainda há gente dizendo que meninas usam rosa e meninos, azul. Outro bom aspecto do roteiro é a abordagem do tema do reaproveitamento de brinquedos em uma época capitalista consumidora, na qual todo mundo quer ter, mas ninguém parece interessado em criar. Não há porque alimentar a indústria de brinquedos comprando sempre mais novos brinquedos, quando eles podem muito bem ser reaproveitados por outras crianças. Por fim, brinquedos podem ser também inventados, como Forky, não precisando ser necessariamente comprados.

Fechando o ciclo iniciado em 1995, as aventuras em “Toy Story 4” compreendem a evolução da sociedade, mas ainda remetem à canção imortalizada no Brasil por Zé da Viola: “Se a fase é ruim (…), amigo, estou aqui”.

(Susana de Castro é professora de filosofia da UFRJ. Trabalha com filosofia e gênero desde 2010. Cinéfila e leitora de quadrinhos, possui dois gatos com personalidades totalmente diferentes um do outro: John e Samba. Na filosofia, trabalha principalmente com neopragmatismo, filosofia política e feminismo)

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