O texto a seguir contém spoilers de “Vingadores: Ultimato”.
Em uma de suas muitas obras-primas, Raoul Walsh analisou a construção da sociedade americana em uma narrativa faroeste sobre a conquista do Oeste. O lindíssimo “A Grande Jornada”, de 1930, termina exatamente com a formação do que hoje é o modelo mais tradicional possível de família estadunidense, uma dona de casa e um aventureiro celebrando sua união diante de uma casa recém-construída. É a formação da mitologia que serve de base para a sociedade americana. Em “Vingadores: Ultimato”, Joe e Anthony Russo não se inspiram diretamente no faroeste de Walsh, mas há uma forte conexão entre as ideias de ambos os filmes. No mundo contemporâneo, engolido pela cultura pop nerd e com um cinema tomado pelo digital, é como se “Ultimato” fosse uma releitura não de “A Grande Jornada”, mas do mito americano, substituindo o clássico herói pistoleiro pelo mitificado herói que veste a bandeira dos Estados Unidos.
“Ultimato” jamais renega esse mito. O filme reconhece a grandeza de seus personagens e desenvolve sua narrativa por cima de sua estrutura de assalto, na qual os personagens voltam no tempo para tentar vencer Thanos, para poder revisitar e reafirmar a mitologia de seus personagens. As digressões ao passado servem justamente para curar os heróis, feridos após o fracasso de “Guerra Infinita”, e reafirmar sua importância para a proteção do universo. Se em “A Grande Jornada”, Walsh aborda vários núcleos diferentes para apresentar um panorama geral da América daquele período, em “Ultimato”, Joe e Anthony Russo alternam entre os principais heróis da saga da Marvel – Capitão América, Homem de Ferro e Thor – para analisar seus feitos e os ajudar a encontrar seus lugares no mundo.
Traçando esse recorte entre “A Grande Jornada” e “Ultimato”, é interessante ver como ambos os filmes apresentam as características dos cinemas de seu tempo. Enquanto a obra de Walsh utiliza muitos planos abertos pra destacar a gigantesca escala de produção – na época, o filme foi vendido como o maior faroeste já feito –, algo constatável não só pela absurda quantidade de pessoas nos planos, como pelo volume de construções, o longa dos Russo expõe as marcas do cinema da era digital. A grande batalha é travada não por figurantes em longos campos abertos, mas por atores que compartilham espaço com bonecos feitos digitalmente em cenários que sequer existem além da tela verde.
Apesar de tantas semelhanças, há também diferentes importantes para separar as duas obras. Até por característica de filmagem da época, Walsh mantém a câmera sempre distante dos personagens em “A Grande Jornada”. A escolha vai além dessa característica dos anos 30, é também uma opção que permite que o plano seja preenchido com mais personagens, ajudando a manter a gigantesca escala da produção. Já em “Ultimato”, os Russo fazem uso de panorâmicas e planos gerais que mostram a grandeza dos confrontos, mas os momentos mais importantes são justamente retratados por meio de close-ups e planos detalhe, ou seja: justamente os que nos aproximam e humanizam essas figuras heróicas.
Quando em uma das primeiras cenas, Tony Stark se vê próximo da morte, à deriva no espaço, o personagem grava uma mensagem de despedida e, ao fim, acaricia seu capacete desfigurado. É um momento no qual o personagem reconhece o valor de sua jornada mas, ao mesmo tempo, reconhece também as marcas deixadas por ela, o que está diretamente ligado a ideia de sacrifício que permeia as decisões de todos os heróis do filme. Marcas “de guerra” são comuns não só na armadura do Homem de Ferro: Thor, por exemplo, quando reencontra uma figura de valor afetivo de seu passado, também tem seu novo olho e marcas ressaltados: “o tempo não foi bom com você, não é?” diz a personagem, destacando o peso dos acontecimentos no semblante do deus nórdico. A todo momento, os vingadores são lembrados de seus feitos, de seus erros e de suas marcas, o que balanceia a mitificação com a humanização deles.
O que mais aproxima as obras no texto mencionadas, porém, é o fato dos Russo darem o protagonismo do longa para o Capitão América – em “Guerra Infinita”, o posto cabia a Thanos. Steve Rogers é o “ideal” de cidadão americano “perfeito”, representando valores como honra, dignidade, coragem e por aí vai, bem como era o personagem de John Wayne no longa de 1930. Se no capítulo anterior da saga da Marvel, a narrativa girava ao redor do desejo de destruição do protagonista, em “Ultimato” o foco é na reafirmação do mito do herói americano, que salva o dia para, ao fim, voltar para os braços da família e ter seu merecido descanso.
O filme dos Russo, entretanto, não se limita a recontar (e adaptar) esse mito da formação da América e sua relação com figuras heróicas, também há um apontamento para um futuro diferente. “Ultimato” é como uma passagem de bastão, quando velhos heróis descansam após reestabelecer a ordem e preparam a próxima geração. Apesar de todos os grandes feitos e viagens intergaláticas, no final, aqueles heróis eram humanos – alguns fisicamente, outros emocionalmente, como Thor –, o que faz com que o desgaste cobre seu preço, e as cicatrizes e feridas de batalha se tornem uma forma de contar suas histórias.
Esse apontamento é, mesmo que sutil, uma interessante forma de posicionar o estúdio diante do atual contexto sociocultural do mundo. Se o universo Marvel começou girando ao redor de homens brancos como Tony Stark, Steve Rogers e Thor, a saga parece disposta a descansar seu passado e expandir seu olhar. É interessante a escolha, pois da forma como a narrativa se desdobra, o que o estúdio tem em mãos é a possibilidade de esticar seu escopo e dar o protagonismo na mão de guerreiras mitológicas negras, heróis africanos, super-heroínas com poderes divinos que viajam pelo espaço… Sem que isso jamais se torne um panfleto ou uma bandeira. É simplesmente a aceitação das transformações do mundo.
Se “A Grande Jornada” termina reafirmando a fundação da América dentro do contexto da década de 1930, “Vingadores: Ultimato” faz o mesmo para, em seguida, olhar para frente e vislumbrar um novo horizonte. Sem que isso faça dele um filme melhor que “A Grande Jornada”, “Vingadores: Ultimato” se diferencia por reconhecer e reafirmar sua mitologia, mas abrir caminho para um futuro mais diverso e audacioso. Para os fãs de filmes mais diversificados, o amanhã do universo Marvel nunca foi tão empolgante.