Nos anos 50, o psiquiatra alemão Fredric Wertham publicou “A Sedução dos Inocentes”, sua tese sobre quadrinhos serem um incentivo à delinquência juvenil. O que o autor não sabia é que havia criado, sem querer, uma espécie de “bíblia reversa” para o quadrinho underground que nasceria na década seguinte: tudo o que era considerado torpe para a juventude nos quadrinhos populares seria triplicado nas publicações independentes. Sua pulsão inicial é a contracultura. A história do quadrinho independente se apoia na sua própria existência enquanto publicação maldita, grosseira, de baixa circulação e fadada ao esquecimento, presa em um nicho de leitores em eterno ciclo de retroalimentação. Mesmo que, em meados dos anos 80, o gibi underground e as grandes editoras tenham se cruzado em grandes publicações, alcançando um status considerável que permitiu que quadrinhos autorais se tornassem produtos de livrarias, eles não se tornam um produto menos marginalizado, apenas se integram a um mercado que entende arte como artigo de luxo. Em outras palavras, o quadrinho autoral começa a ocupar esse estranho vazio entre subproduto literário e objeto de nicho.
Na virada do século, a internet passa a existir como meio real e concreto de autopublicação. É possível ser autor sem editora, sem imprimir uma zine sequer. Porém, é a partir desse momento que surge a ideia de “quadrinhos para a internet” como algo à parte, como se fosse necessário repensar toda mídia para que ela se encaixasse dentro de um ideal online: de forma geral, a disseminação da ideia de quadrinhos muito diretos, feitos a partir de arte digital e de fácil assimilação. Quadrinhos autorais são publicados em massa, mas com apelos tão comerciais quanto os produtos de primeira linha das grandes editoras.
A gênese da obra do cartunista Simon Hanselmann surge desses dois motores: a pulsão contracultural e a possibilidade de disseminação do novo século. Simon, nascido em uma família pobre e desestruturada na Tasmânia, crossdresser desde os 5 anos de idade, quadrinista desde os 8, acumula adjetivos e potências criativas vindas de sua própria experiência com o mundo. Em 2008, Simon começa, em seu Tumblr, uma série de quadrinhos satirizando os personagens infantis Meg & Mog, uma pequena bruxa e seu gatinho, retratando-os como um casal de 30 anos em eterno estado de letargia depressiva e vício. Adicionando um “g” ao final de seus nomes, Megg e Mogg protagonizam histórias em sua decadente casa, junto a Owl, uma coruja antropomórfica que tenta desesperadamente se adequar à vida normal, e Werewolf Jones, um lobisomem libertino pansexual viciado em drogas. A obsessão de Simon com esse microcosmo de personagens e possibilidades narrativas foi, aos poucos, complexificando seu universo de arte sequencial. Ele produz, até hoje, um dos trabalhos mais ricos do quadrinho contemporâneo.
Grande parte dos quadrinhos de Megg & Mogg segue um modelo de álbum europeu em sua formatação: grandes páginas com pequenos quadros, sendo a maioria das páginas preenchidas por 12 quadros idênticos. Todo trabalho é feito sem o uso de qualquer suporte digital e com materiais baratos, como o uso de corantes alimentícios para colorização. Estas limitações, inicialmente tomadas por falta de recursos, mas continuadas por princípio autoral, já afastam completamente o trabalho de Simon da maioria dos grandes gibis que tiveram seu início na internet, e até das referências mais óbvias que o quadrinho independente teria depois dos anos 90. Megg & Mogg está muito mais próximo de uma versão maconheira e sexualmente explícita de Mumin, de Tove Johnson, do que dos trabalhos de Daniel Clowes (Ghost World). Essa forma constante de trabalho, baseada em repetições de formas e imagens, típicas de publicações para jornais ou revistas impressas, é parte crucial do seu projeto de quadrinhos.
Quanto mais as histórias de Megg & Mogg se tornam sobre um ciclo ininterrupto de personagens criando problemas irreparáveis para si mesmos, em estado de completa desesperança, mais as formas rígidas de enquadramento são efetivas em organizar as imagens e o texto em padrões de destruição. Os quadros que, comprimidos em formatações quadradas, dividem espacialmente os personagens em posições sempre mais fechadas, ainda são tomados por altos níveis de detalhes gráficos. Existe uma constância muito clara na dedicação de Simon em não deixar nada sublinhado ou sugerido. Seus traços não são complexos, mas a quantidade de elementos em um só quadro denuncia que seu detalhismo está na composição da cena, não na apuração visual de seus personagens. Quando toda essa rigidez é rompida por um página inteira de um só quadro, ou quando os quadros se confundem num mesmo espaço – por efeito alucinógeno de alguma droga que seus personagens tenham tomado -, as tendências detalhistas e firmes dos quadrinhos de Simon ganham ainda mais potência.
Já que parte do referencial direto para Megg & Mogg vem do audiovisual televisivo, como uma sitcom tardia sem claque, muito do movimento entre os quadros surge de forma similar a um storyboard. Vários quadros são gastos sem diálogo, com um silêncio funcional que se estende como em uma cena gravada. Ou, também, de um quadro para outro, uma imagem é inserida em outro espaço apenas por um momento, como uma cena montada à parte.
A forma rígida das páginas torna-se, assim, o principal fator estético e temporal que permite a Simon seu tipo muito específico de arte sequencial: uma narrativa clássica, que tange constantemente a abstração, ao acompanhar personagens sem qualquer tipo de desenvolvimento possível.
Simon é, antes de tudo, um autor interessado em traços de comportamento autodestrutivos que funcionem dentro de um modo de operação cartunesco. Todas as histórias de Megg & Mogg, episódicas e fechadas em si mesmas, se baseiam em expectativas criadas pelos personagens que conhecemos, assim como esperamos o pessimismo de Charlie Brown em Peanuts ou a preguiça do gatinho Garfield. A diferença é que, nos quadrinhos de Simon, esperamos que o Werewolf Jones seja sodomizado, ou tenha uma overdose, que Mogg fique sem maconha para fumar ou que Owl tenha mais uma crise nervosa enquanto é arrastado para o fundo do poço junto com seus amigos. O ciclo de expectativa e entrega, básico em qualquer personagem recorrente de tirinhas de jornal ou de gibis, acaba tornando-se o drama central de toda a saga Megg & Mogg, simplesmente porque suas figuras têm como base a deturpação absoluta de suas próprias vidas. Toda vez que um personagem comete algum de seus traços de personalidade, temos mais um erro, mais um problema irreconciliável, mais um passo à beira do abismo. A experiência de ler os quadrinhos em suas compilações oficiais encadernadas (já são 4 delas, formando uma cronologia confusa e absolutamente despreocupada com linearidades) é a de transformar punchlines cômicas em reafirmações de um universo de personagens em desgraça.
Megg, sendo a bruxa protagonista que estampa a série e catalisa todos os seus conflitos, é a mais trágica protagonista possível. Entre suas frustrações sexuais com seu namorado Mogg, seus casos extraconjugais, sua mãe viciada em drogas e sua absoluta falta de perspectiva em continuar viva, o que mais estabelece Megg enquanto personagem constantemente interessante é a capacidade de ser repulsiva e relacionável ao mesmo tempo. Quase sempre chapada em seu sofá, tentando manter seu esquema de benefício governamental para pagar o aluguel, Megg se afunda profundamente em uma rotina de total apatia com a realidade, preenchida pelo vazio. É uma figura frágil, sempre à beira do colapso completo, mas que nunca deixa de agir contra os outros e a favor do impulso inconsequente de suas vontades. Não que isso não aconteça com os outros personagens, mas, como quase sempre recaímos no ponto de vista de Megg, suas ações contra si mesma e contra os outros determinam toda a relação de afeto e desprezo que complexifica a obra de Simon. Não há redenção possível. Esse é tanto a premissa quanto a conclusão.
No extremo oposto, a figura de Owl entra como uma voz da razão deturpada pelo meio, funcionando sempre como escada para as piadas mais cruéis. Mais da metade das histórias de Megg & Mogg gira em torno do quão intensamente os outros personagens conseguem fazer a vida de Owl um inferno, mostrando desde a destruição de diversos de seus relacionamentos até uma pegadinha que envolve estuprá-lo grupalmente em seu aniversário. Owl existe como uma figura vinda diretamente da realidade que todo o grupo de amigos nega, sendo violentamente repreendido e destruído constantemente. Seus traços amigáveis sempre terminam em soco, sangue ou esperma, funcionando como uma figura simpática e instável, que canaliza as consequências gráficas do horror nos quadrinhos.
Esses personagens ocupam espaços abandonados de um “cenário ocidental genérico”, como Simon descreve sua criação de cenário. Suas relações com esses espaços são de consumo desesperado ou de cinismo, não há qualquer refúgio acessível dentro de um espaço formulado e definido pelo não-pertencimento. Esses monstros transitam pelo abandono do capital enquanto lógica de qualidade de vida e se tornam aberrações conscientes daqueles lugares.
A maior injustiça que pode ser cometida ao falar de Megg & Mogg é colocá-la como uma “leitura irreverente sobre temas relevantes”. Em seus quadrinhos, Simon certamente mostra questões como o abuso do uso de drogas, suicídio, sexualidade, doenças mentais, entre quaisquer outros temas que possam ser considerados relevantes, apenas para serem tratados da forma mais superficial possível. Essas questões existem não para serem discutidas ou abordadas com relevância, não existem em um mosaico esclarecido, elas são parte de uma realidade gráfica que assimila um conjunto de personagens em estado de marginalização completa, para explorá-los dentro de um formato que permita experienciar um limbo existencial, marcado por ciclos de destruição individual e coletiva. Não há concessões sobre o limite da desgraça que essas figuras enfrentam, e também não há preocupação com falsas responsabilidades que o autor teria em abordá-las. Ele nunca nega o escatológico e o mau gosto como estilos de vida potencialmente estéticos e textuais. O quadrinho underground deve desobedecer qualquer norma cultural de seu tempo, deve contrariar expectativas em cima de sua própria importância e seu próprio alcance. Ao invés de Simon procurar capturar um “retrato geracional” ou uma “fatia da vida”, ele permite a seus personagens, através de um formato específico de quadrinhos, que condensa diversas formas de narrativa gráfica juntas (algo entre a tirinha, a sitcom e o gibi tradicional), existirem para além de marionetes em dissertações temáticas.
Em tempos onde as palavras-chave da cultura popular cercam a tal da representação e da diversidade, esvaziando-as de qualquer sentido mais profundo, a obra de Simon Hanselmann existe como pura contracultura. As ideias de arte enquanto produto feito para a identificação segura, como um espaço de conforto ou como dossiê de uma realidade ideal tornam-se nada além de bobagem quando Megg & Mogg oferece a ideia de identidade e identificação como um absoluto terror.
Não há qualquer conforto ou desejo em se perceber nesses quadrinhos, em personagens podres, desprezíveis. Mas isso também acaba sendo inevitável. Não há recorte, não há um algoritmo em busca de resultados para um público direto, que cria um produto vendável para determinada minoria. A representatividade existe em personagens transexuais, viciados e suicidas, que não deixam, em momento nenhum, de também serem pessoas terríveis. Identificar-se com personagens desprezíveis e autodestrutivos, inseridos em um universo que os obriga a serem repulsivos como única resposta à altura, é uma experiência muito mais concreta, muito mais vívida, do que a busca por conforto em mídias que certamente os desprezam, mas que precisam esconder isso através de uma cota de representatividade.
O estimulante em poder acompanhar o curso de um artista tão essencial quanto Simon é justamente essa expectativa pelo provável, preenchida pela certeza de um trabalho incansavelmente inventivo e único. Um trabalho gráfico extenso, em expansão, que compreende com muita propriedade a experiência de habitar o limbo diário, esperando que algo, em algum momento, aconteça. O que se pode compreender, desde já, é que não há redenção possível em sua obra, devemos sempre esperar pelo pior para os personagens que acompanhamos com desprezo e ternura. Talvez esteja em Megg & Mogg, pela primeira vez na história, um quadrinho que ensine bons caminhos para uma juventude outrora delinquente.